04 May 2006



Acho que a melhor maneira de começar esse post sobre minha viagem a Buenos Aires são três coisas que eu vi no Malba, o Museu de Arte Latinoamericano de Buenos Aires. Em especial uma, bem, coisa de um artista belga chamado Francis Alÿs.

Eu ia dar uma pesquisada a mais na internet para falar sobre ele, mas vamos derramar direto o pouco que sei.

O fato é que domingo passado, após passar pelas galerias principais do MALBA, eu caí no salão que fica tipo no subsolo. E ali tinha um vídeo desse artista belga. Consistia em uma filmagem de uma estrada na Patagônia, do ponto de vista do motorista, indo em direção ao horizonte. Lá na linha do horizonte, que nem era tão lá assim, havia um borrão-miragem devido ao calor que emana do concreto e tal. o filme tinha 2 minutos e ficava passando em loop, um loop quase imperceptível que dava margem a um milhão e quinhentas divagações. Mas não era só isso: atrás do sofá onde você sentava pra ver a projeção Alys tinha preparado uma mesa com uma série de anotações e mapas a respeito da filmagem. A obra era isso tudo e não apenas o filme.

Então você navegava por ali vendo os brainstorm do cara, as pirações durante a viagem. Aquilo me pegou, mas não tanto quanto o que eu li no folheto da exposição - talvez isso tenha sido a obra pra mim, o folheto. É um texto do próprio Alÿs contando sobre o processo de criação dessa chamada "Historia de un desengaño".

No texto ele conta que começou a estudar um povo indígena da América do Sul, os tehuelches. Rola que os tehuelches caçavam um bicho chamado ñandú e daqui segue o próprio Francis. Vou manter em espanhol porque é uma língua legal e não é difícil de ler.

"Empecé a investigar la caza de los ñadúes a raíz de una anedocta, o de un rumor, que me contaron em mi primer viaje a los limítes de la pampa. Se dice que los tehuelches cazaban el ñandu y el guanaco agotando físicamente al animal. La tribu caminaba durante semanas persiguiendo al animal hasta que se daba por vencido o moría de fatiga. Me llamó mucho la atencion por la sencillez absoluta de la técnica y por el uso del caminar como un arma, como método de caza."

Caminhar por uma cidade que não é a sua pode ser muito parecido com o processo de criação. E também com o desenvolvimento espiritual.

"Eso me pasa en muchos proyectos: leegas a un sitio con una ideia muy intuitiva, tratas de traducirla en una imagem y acabas encontrando la materalizacion de lo que buscas por accidente, o donde menos lo esperas. Imagino que entras en un estado de extrema alerta, que te hace captar donde sea que vayas, cómo poder materializar o ilustrar, sí prefieres, esa imagem intuitiva que estás buscando, esa metáfora que estás intuyendo.

(...)

Veo el intento como el especio productivo real."

(Ah, o pouco que sei sobre o Alÿ: belga, formação de engenheiro ou arquiteto, nasceu tipo em 59 e foi em 86 pra Cidade do México onde vive até hoje e pira na batatinha direto. Vi uns vídeos de projetos artísticos deles no Macba em Barcelona ano passado. Tinha tipo uma coletânea de lances dele. Vídeos dele andando ao redor da praça principal da Cidade do México com uma ovelha, um outro no qual ele compra uma arma e anda não sei por quantas quadras com a arma em punho até ser preso pela polícia. E fiquei sabendo também da performance na qual ele andou por quadras e quadras com uma barra de gela até ela derreter e outra quando ele juntou um monte de gente para mover um cômoro de areia por centímetros - o nome dessa era "A Fé Remove Montanhas" hahahahahaha. O cara é muito bem humorado.)

O que isso tem a ver com Buenos Aires? Bueno, no lo sé precisamente. Caminhei feito um tehuelche (ou como um ñandu). Com o Takeda e a Helena caminhei Palermo inteiro no sábado batendo longos papos, visitando livrarias (como a simpática Boutique del Livro, que tem uma lojinha de CDs ligada ao pessoal da Inrockuptibles nos fundos), lojas de roupas, uma papelaria incrível (chamada Palermo), cafés e um resturante indiano ótimo. Caminhei também por bairros cujo nome não faço a menor idéia ouvindo o Yankee Hotel Foxtrot do Wilco inteiro, do início ao fim, dividindo a atenção entre os passantes, as casas, os mercadinhos, os rostos, as roupas, as árvores, o tipo de observação que combina bem com a voz do Jeff Tweedy. Caminhei pelo cheesy Puerto Madero ouvindo o regueiro judeu Matisyahu e pelo centro da cidade ao som do último J Mascis. Comi num resturante peruano tomando Quilmes, num escandinavo estiloso chamado Olsen, conheci o tão falado Oui Oui , um lugar bem aprazível pra tomar um café da manhã na paz.

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De volta ao MALBA. Ele abriga uma coleção não muio grande mas bem representativa de arte latina do século XX: Diego Rivera, Frida Kahlo, Helio Oiticica e mais um monte de gente cujo nome não lembro, organizados por década e movimento. Dei sorte de pegar uma visita guiada por uma menina que ia explicando o básico de cada década. Também pude conhecer o trabalho incrível de uma alemã chamada Gego, uma pintura-instalação doente de um argentino chamado Fabain Marcacco. Havia também uma exposição de fotos e uma instalação de vídeo daquele diretor Abbas Kiarostami. Impermanência e morte na instalação. Espaços vazios como definição do que há com a alemã. E mente fundida com a obra no mural do argentino.

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Teve a Feria de Mataderos, um bairro mais distante do centro. É um passeio massa, porque mesmo sendo autorizada oficialmente como atraçnao turística, fica em um circuito não muito convencional e tanto a feira quanto o comércio local que a rodeia é muito roots. Não roots num sentido cultural, mas num sentido "classe média baixa", se é que vcs me entendem. Então temos coisas como um restaurante de parrilla instalado num lugar que mais parece uma grande garagem, com mesas improvisadas e um cantante mandando ver na viola enquanto as parilladas são servidas sem nenhum tipo de cerimônia.

A comida, como em qualquer feira de rua, é um capítulo à parte. Muitos doces, potes enormes de sorvete, canudos tipo casquinha de sorvete cheios de doce de leite, folhados fritos, churros, choripan (chorizo no pão) e um lance doente: espetinhos de frutas carameladas com PIPOCAS grudadas nas frutas carameladas.

Além disso, tem muito artesanato local, alguma coisinha de camelô, presentes kitsch, incensos, velas, queijos, salames, aquela coisa. Tem apresentação de música folclórica e danças folclóricas no meio da rua, das quais podem participar qualquer um que estiver passando e conhecer os passos elaborados cheios de floreios e nobreza dançante.

Entre as diversas traquitanas à venda, comprei um artigo bastante curioso. Um é uma arvorezinha genealógica feita de madeira. Você paga 10 pesos e a moça que vende escreve com uma letra bonita o nome dos familiares na árvore. Deve ser meio que a versão local do "Escreveu seu nome no arroz", mas achei uma coisa querida para dar de presente.

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O Dalai Lama é realmente um capítulo à parte. Eu havia comprado ingressos apenas para um evento que ia rolar na segunda e terça pela manhã. Mas na segunda ao meio-dia me bateu um lance tipo "pô, quando eu vou conseguir ver o cara de novo?" e acabei comprometendo meu orçamento e comprando um ingresso pra conferência da tarde. Sorte que não era no Brasil, porque aqui estava tudo esgotado. Em Buenos Aires, ao que parece, o budismo não é tão forte então ainda havia muitos ingressos.

Os ensinamentos de segunda e terça de manhã foram muito sobre a base fundamental do budismo, mas não parecia. A habilidade do Dalai Lama é absurda. Ele estava passando conceitos profundíssimos e fazer o raciocínio torcer por completo usando frases e palavras simples. Ele questionou a noção de realidade baseada em um observador independente, desconstruiu a noção de qualidades intrínsecas dos fenômenos (incluindo o fenômeno do "eu") e tudo isso usando muito pouco termos técnicos.

Na segunda à tarde, o assunto era Saúde e Espiritualidade. Sua Santidade dividiu o palco com médicos, psicólogos, cientistas, etc, e mais uma vez demonstrou seu conhecido trânsito entre esse tipo de profissional. Humilde porém firme nas suas convicções, ouviu os painéis dos outros participantes com atenção e no final deixou sua opinião acerca do assunto tratado.

Eu devo dar uma olhada nas minhas anotações nos próximos dias e produzir algum texto sobre os encontros. Mas, concentrado no assunto e em compreender a tradução pro espanhol, fiz poucas anotações. Gravei uma boa parte dos encontros no mp3 player, mas duvido que dê pra ouvir alguma coisa direito.

Aguardai.

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Assisti um pouco da Globo Internacional. A Grande Família passa às terças lá. Vi um episódio de My Name is Earl, a série com o Jason Lee. Sensacional. Vi o The Office que tanto se fala. Mas me deu angústia ver. É engraçado, mas também meio deprimente.

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Encontrei livros de uma autora japonesa chamada Banana Yoshimoto. Há uns dez anos saiu "Kitchen" no Brasil. E nunca mais encontrei nada. Tive que ler "Sueño Profundo" em espanhol. É tudo muito lindo. Um pouco a ver com o que escrevi acima da alemã Gego: tudo muito esparso, fantasmagórico, impermanente. As pessoas vivem em espaços amplos deixados por pessoas e aquela amplidão atordoa. Dormir e beber: os remédios usados pra deixar tudo mais palatável. Mas no fim das contas a dor só vai embora quando o espaço é confrontado e absorvido e não preenchido. Há muito espaço nas histórias. Você entra na frequência mental das personagens muito fácil. Um estado ilusório de sonho que lembra aquelas histórias orientais sobre borboleta e homem sonhando.

Ou então uma outra legal que tem num cartaz no Gonpa, lá em Três Coroas. Algo assim:

"Um homem sonhava que um monstro estava em cima dele prestes a devorá-lo.
O homem pergunta ao monstro:
- O que você vai fazer comigo?
E o monstro, bem canhotinho:
- Não sei. O sonho é seu."