23 November 2006

A Gota Laranja (de volta à ficção)

A casa era toda branca. Quando eu digo toda, quero dizer toda. Como em 2001 - o filme. Móveis, paredes, aberturas, dobradiças, torneiras, chuveiro, rodapés, talheres, pregos nas paredes, tudo que não era considerado artigo pessoal era branco. Não gelo, branco branco mesmo.

Um dia, uma enorme gota laranja do tamanho de um Fuca veio flutuando rua abaixo e, fazendo uma suave curva, entrou no jardim do número 63. O jardim era verde. A casa era branca. Toda branca.

Como não havia ninguém em casa, não houve a necessidade de bater. De qualquer forma, a gota tinha a chave (com um pouco de dinheiro se consegue tudo hoje em dia) e não fez cerimônia. Entrou pela porta da frente com naturalidade e começou a examinar os cômodos procurando a melhor maneira de se espalhar.

A primeira idéia é sempre a mais entusiasmada e que parece causar impacto: o lavabo. Compacto e logo na entrada, ele seria inteiramente coberto de laranja pela enorme gota com facilidade, seria um espetáculo. O problema é que pouca gente dá atenção ao lavabo, é um cômodo menor, até mesmo as toalhas e os sabonetes vem em tamanho reduzido no lavabo.

Desistindo do lavabo, a gota laranja do tamanho de um Fuca seguiu pelo curto corredor (obviamente uma escolha rapidamente descartada, não vamos nem entrar em detalhes) e chegou à opção mais clássica entre as gotas: a sala. Por sua importância social entre as famílias que moram nas casas onde tudo é branco, a sala se destacava na atenção da gota com a vibração de um alvo saboroso. A sala exigia maior experiência, era uma operação complexa: se dividida informalmente entre sala de jantar e de estar (onde frequentemente "estar" significava simplesemente “ser”) e oferecia, além do espaço em si e dos móveis, uma boa quantidade de pequenos objetos de decoração e apetrechos randômicos que teriam de ser escolhidos a dedo se seriam alaranjados pela gota ou se seriam salvos. Qual a melhor composição? Espalhar-se toda por um canto ou estourar bem no meio cobrindo pequenos focos por toda a extensão do ambiente? Escolhas, escolhas...

Da sala era possível enxergar a cozinha e a área de serviço. Geralmente dois locais bastante visados pelas gotas, neste caso não houve atração mútua. Nem o conjunto cozinha-área brilhou à gota e nem a gota pareceu ameaçadora às duas peças inteiramente alvas. A cozinha trazia alguns empecilhos extras: como os talheres e a louça eram considerados de uso coletivo, também teriam de ser coloridos em alguma porcentagem e fazer isso com as portas dos armários fechadas era um trabalho até poético, mas também extenuante e de pouca ressonância real. Isso era reservado às gotas mais excêntricas, o que não era o caso desta.

A gota laranja subiu do tamanho de um Fuca subiu a escada branca ignorando a mesma como uma possibilidade, o que gerou ciumeira. Atravessou o corredor e foi à suíte: criados-mudos brancos, guarda-roupa branco, espelho branco, abajures brancos, penteadeira branca, sistema de som branco, laptop branco, roupas brancas, banheiro inteiramente branco (com banheira de hidro branca) e cama com dossel brancos.

Dignidade, enfim.

Sim, ainda havia dois quartos a serem explorados, mas esta gota é experiente o suficiente para reconhecer o local de sua morte quando interage com ele. Como os outros aposentos iriam competir com dossel e hidro?

Essa, aliás, era sua derradeira decisão: dossel ou hidro?

Escolheu o dossel pela dramaticidade, pela dificuldade maior de limpeza e pela estética: uma boa parte da tinta iria formar lindos desenhos no tecido translúcido que pendia inocente. E então flutuou até o centro da cama.

Ali, suspirou algumas vezes, fazendo com que sua circunferência se expandisse e contraísse sutilmente. Percebeu o ambiente ao redor e escolheu o momento de estourar.

A gota laranja estourou exatamente às 00h28min do dia 15 de outubro de 2002. Ela deixou seis filhos e a certeza de que a vida de uma gota não tem sentido sem invadir uma casa pintada toda de branco e fazer aquela sujeirada toda. É uma tradição que mantém viva a comunidade das gotas, seu bom humor e sua vontade de levar a espécie adiante. É difícil de entender. E, embora os habitantes das casas brancas discordem, é muito engraçado.