26 January 2007

A mente mente



Qual é a grande questão?

Acho que eu vou começar pelo fato de que os primeiros 60 minutos de A Scanner Darkly me irritaram muito. Primeiro eu pensei que fosse pelo excesso de papo junky pointless, saca? Aqueles círculos de raciocínio de chapados que não chegam a lugar algum, o que pode até ser divertido pra quem está conversando mas que é um pé no saco de assistir. Pois que metade do filme é feito disso e eu lá pensando "com uns 8 anos a menos eu ia adorar essa chalaça toda". E mais ainda: o filme é todo animado sobre imagens reais de atores, o que dá um ar ainda mais nervoso à experiência. E a legenda era podre, mal traduzida.

Mas de repente, depois que eu quase dormi, tudo começa a fazer sentido. Porque o filme em si dá um jeito de clarear as coisas e também porque me caiu a ficha: tudo gira em torno do abuso da tal "substância D", uma droga que divide o cérebro do usuário e faz com que ele desenvolva dupla personalidade, esquizofrenia, esses troços. Então, claro: tome-lhe de cara uma hora de esquizofrenia pura a ponto de cansar a sua cabeça, pra você entrar na paranóia dos personagens. Transferência de experiência. A paisagem mental confusa, tomada de fog, é transferida da cabeça deles pra sua. Causa um desconforto.





Diferente deles, no entanto, você tem a visão panorâmica e a certo ponto, antes que resolva abandonar a trama, começa ser informado sobre o que está acontecendo por um avatar da Wynona Rider. E o interesse pelo filme se reacende. E se assanha a certeza de que, mesmo com seus problemas, o Phillip K Dick é um pensador incrível em termos de comentário cultural & mental. Assim como a idéia de que o Richard Linklater é um excelente comequieto, a ponto de transitar tão bem entre doenças, romantismo indie e sessões da tarde sem fazer grandes escândalos.

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É o tipo de filme com uma temática muito contemporânea: o funcionamento da mente visto de dentro como um espelho do que está fora (e não como uma massa cinzenta descnectada do resto do corpo e do mundo e dos fenômenos).

Não há como negar, é uma tendência. Rapidinho podemos colocar aí o terrível A Cela, Quero Ser John Malkovich, Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembrança, esse novo aí Mais Estranho que a Ficção... deve haver mais coisa... A mente está na moda. Olha a quantiade de livros sobre o assunto. E capas de revista semanal. E quadros no Fantástico. Se está num quadro do Fantástico, é porque rolou.

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O que é a web 2.0 se não a externalização mais clara de modelos mentais nas interfaces?

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Como falei antes, revi o Brilho Eterno. Com o perdão do trocadilho, é um filme brilhante... O que ele tem em comum com o A Scanner Darkly? Os dois trabalham com a idéia de que a realidade exterior e a realidade interior são intercambiáveis se não "espelháveis". E o "Brilho" mostra isso de uma maneira gráfica comovente. Vai dizer: deviam passar isso nas faculdades de psicologia.

É triste o fato de que não somos ensinados a navegar em nossa própria mente como o Jim Carrey faz. Na verdade, o que acontece com ele é bem um reflexo da nossa cultura: não conhecemos nossa própria mente, com quem andamos todos os dias, 24 horas por dia, 7 dias por semana. Não somos educados a lidar com ela, mas estimulados a interferir de fora pra dentro em vez do contrário, de dentro pra fora.



É o que mostra o filme. O Jim Carrey chamou cientistas pra manipularem as memórias dele. Alterar. Apagar. No meio do caminho, descobriu que era melhor ele mesmo fazer o serviço. Porque as memórias podiam ser ressignificadas. Reestruturadas. Não são estanques. Não são números. Não são exames.

Foi isso que aconteceu. Se o pessoal da Lacuna Inc tivesse sido bem sucedido, teria tirado dele a oportunidade de refazer conexões, aprender. É duro e dolorido: dói revisitar e dóis mais ainda encontrar fragilidades durante o processo. Lembram dele buscando situações constrangedoras pra se refugiar da limpeza étnica memorial da Lacuna? É o que acontece quando se olha pra dentro com tanta disposição e entrega. É o preço que se paga para não se submeter a processos cirúrgicos frios e matemáticos.

E não se pode nem garantir um final feliz. Porque embora o filme termine bem, sabe-se lá o que aconteceu com o Jim Carrey e a Kate Winslet depois. Quanto tempo eles ficaram juntos? Foi uma decisão acertada impedir que a Lacuna terminasse seu trabalho?

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Acho que foi. Não importa se eles ficaram juntos por muito tempo depois, é possível que sim, é possível que não. Acho que com tudo que aprenderam no processo, ganharam mais chances de viverem juntos por mais tempo.




A parte mágica do filme, a interpretação cinematográfica dos processos mentais é linda. Mas mais lindo ainda é a parte em que eles se ouvem sendo detonados um pelo outro, na gravação da fita cassete. É tudo exposto e todas as cartas são colocadas na mesa. Ainda assim, eles decidem ir adiante. É lindo.

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Talvez não seja "ainda assim, eles decidam ir adiante". Talvez seja "por isso mesmo".

Suspeito que amor seja isso. "Por isso mesmo" e não "ainda assim".

Meu uso-ato-falho de "ainda assim só demonstra um pouco da minha imaturidade...

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E semana passada saiu na Zero Hora que cientistas isolaram o processo de síntese da proteína que fixa memórias. Isso vai permitir, no futuro, que você escolha que memórias quer manter e quais você quer apagar da sua mente. Pelo menos essa é a promessa. Daqui a pouco sai na capa da Veja assim. Um desserviço que provavelmente vai ser prestado.

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Esses caras não viram o filme?

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A mente não tem forma, nome, cor, substância. A ciência ainda não descobriu o que é a mente. Não sou eu que estou dizendo. Vi em vários livros e artigos. Não vou linkar, vocês vão ter que acreditar em mim... ou não.

O fato é que o estudo da mente saudável é recente. A psicologia e a psiquiatria se esmeraram durante décadas pra conhecer as anomalias da mente. Mas, pasme: estudos sobre o que é uma mente saudável são novos e inconclusivos. E nebulosos.

Por quê? Porque não tem como descobrir o que é a mente olhando de fora, somente de dentro, por experiência própria e subjetiva.

Talvez pareça que eu sou contra remédios ou intervenções externas. Não é o caso. Há casos e casos e o problema é que hoje é tudo muito fácil: apertar botões, tomar pílulas, corta aqui, tira ali.

Meu comentário é mais sobre uma cultura pouco difundida mas profundamente sólida e bem fundamentada que diz: você pode treinar, observar, ressignificar, reestruturar, conhecer e se familiarizar com os seus processos mentais. Ninguém nos conta isso.

Boa sorte pra nós.