16 December 2005

Storymixtape #1

Saca mixtape? São as fitas que os DJs fazem caseiramente para espalhar suas habilidades nos tocadiscos.

Há algum tempo eu venho pensando como seria interessante fazer uma experiência de mixtape com literatura. Assim como os DJs, cortar e colar trechos de histórias e transformar numa coisa nova, fluída.

Bom, inspirado pelo documentário Scratch, que assisti hoje, e ouvindo o Entroducing do DJ Shadow, peguei alguns livros, separei alguns trechos e fui mixando.

O resultado está abaixo. Vamos ver se funciona...


Storymixtape #1

Eu adoro música. Música profunda e clara, música com alma e suingada, música com melodias inspiradoras e harmonias acolhedoras. Música hipnótica, cheia de elementos etéreos que te transporta para outros universos. Música dinâmica e dramática com uma orquestração rica, daquelas clássicas ou então das que fazem parte da trilha sonora de um filme.

Às vezes, é difícil definir o que é que realmente faz uma música algo tão evocativo e emocionante. Talvez seja apenas a sua honestidade, através da qual o compositor conseguiu traduzir emoção em estado puro, sentimentos ou idéias em ondas sonoras. Como ouvintes, nós re-traduzimos as ondas que saem dos alto-falantes novamente em idéias, sentimentos ou emoção em estado puro.

Cientificamente falando, isso tudo é apenas transferência de energia. Mas eu sei que é mais do que isso. No esquema de coisas de Kathy Torrance, havia um desdém especial reservado para o cantor. Ela o via como um fóssil vivo, um sobrevivente inoportuno de uma era anterior, menos evoluída. Ele era ao mesmo tempo maciça e insignificantemente famoso, dizia ela, da mesma forma que era maciça e insignificantemente rico. Kathy pensava a notoriedade como um fluido sutil, um elemento universal, como o flogisto dos antigos, algo disperso uniformemente no momento da criação por todo o universo, mas com tendência a aglutinar-se, sob condições específicas, em torno de certos indivíduos e suas carreiras.

Rez, na opinião de Kathy, havia simplesmente durado demais. À medida em que vivemos, caímos e somos destroçados por várias armadilhas. Ninguém escapa delas. Alguns até mesmo convivem com elas. A idéia é se dar conta de que uma armadilha é uma armadilha. Se você está numa e não se dá conta, você está fodido. Acho que me dei conta na maioria das minhas armadilhas e escrevi sobre elas. Ainda não encontrei um preso que não conte os dias, todos os dias, muitas vezes ao dia. Estou cansado de ouvir planos de fugas mirabolantes, estou cansado de ouvir gente dizendo que, quando sair, a primeira providência vai ser roubar um automóvel na esquina.

Cada nova linha é um começo e não tem nada a ver com as linhas que a precederam. Todos começamos como novos, a cada vez. E, é claro, isso não tem nada de sagrado. O ser humano já conseguiu ampliar bastante suas capacidades, a saber: aumentar seu tempo de vida, pulverizar sempre mais e mais suas marcas atléticas, quintuplicar os requintes de suas técnicas de extermínio mútuo, centuplicar o poder de se comunicar e outras conquistas tais que todos conhecem – tudo em progressão aritmética. Em progressão geométrica exponencial o ser humano só se ultrapassa constantemente e na capacidade de se surpreender.

Não há perdas em escrever: faz seus dedos do pé rirem enquanto você dorme, faz você andar como um tigre; ilumina seus olhos e coloca você frente a frente com a Morte. A sorte da palavra. Vá com ela, mande-a. Seja o Palhaço das Trevas. Morte é ausência definitiva. Tomei consciência desse fato aos quatro anos de idade, depois de ter ficado órfão. Estava sentado à mesa do café-da-manhã, encolhido por causa do frio; minha avó espanhola, de vestido preto, vigiava o leite no fogão de costas para mim.

Imaginar a morte como um fardo prestes a desabar sobre nosso destino é insuportável. Conviver com a impressão de que ela nos espreita é tão angustiante que organizamos a rotina diária como se fôssemos imortais e, ainda, criamos teorias fantásticas para nos convencer que a vida é eterna.

Nada transforma tanto o homem quanto a constatação de que seu fim pode estar perto. Existe acontecimento comparável? Um grande amor? O nascimento de seu filho? Pior, muito pior do que as escandalosas tempestades eram os momentos de tensão e expectativas provocados por traiçoeiras calmarias, quando as águas quietas e o vento morto traziam consigo a certeza de mudanças no tempo e de mar agitado pela frente.

Muitas pessoas me disseram que admiram Chris pelo que ele estava tentando fazer. Se tivesse sobrevivido, eu concordaria com elas. Mas isso não aconteceu e não há como traze-lo de volta. Não tem conserto. Não sei se a gente supera esse tipo de perda. O fato de que Chris se foi é uma dor aguda que sinto todos os dias. É realmente duro.

Alguns dias são menos ruins que outros, mas vai ser duro todos os dias pelo resto de minha vida. Quando a música terminar, apague a luz. Porque a música é um amigo muito especial.


Tracklist

Tom Middletom – texto do encarte do álbum The Sound of The Cosmos
William Gibson – Idoru
Charles Bukowski – O Capitão Saiu Para o Almoço.../ Pankrác EC II J.B. Gelpi
Por Um Fio – Dráuzio Varella
100 Dias Entre o Céu e o Mar – Amyr Klink
Na Natureza Selvagem – John Krakauer
When The Music is Over – Jim Morrison