06 April 2006

Continuando

No último dia 5 saiu um artigo excelente no Wall Street Journal Online (não, eu não leio, eu recebi o artigo) meio que dando a real a respeito do “mito” que existe em torno da Apple.

Pra quem não convive com a área de tecnologia ou de design, é o seguinte: a Apple é considerada uma espécie de marca alternativa, contestadora, que vai contra o status quo, o reverso da Microsoft. Em parte, isso vem do pioneirismo do seu sistema operacional e da inteligência de seus produtos. Mas por outro lado, o verdadeiro misticismo que envolve a Apple vem é de uma visão de marketing baseada em um dos aspectos do comportamento humano que mais conferem valor agregado a um produto: a rebeldia.

Em 1984, quando a Apple lançou o primeiro Macintosh com >um comercial curioso no Super Bowl dirigido pelo Ridley Scott.

Num cenário “THX 1138 mais sujão”, o pessoal conformista é cooptado pelo Big Brother em frente a uma tela, todos vestidos iguais, aquela boa e velha alusão ao conformismo. E lá vem a atleta correndo feito uma louca com um martelo (que parece o martelo comunista) sendo perseguida pela polícia (sempre eles...) até chegar em frente à tela e jogar o martelo contra ela. Assina mais ou menos assim: “Em 24 de janeiro o novo Macintosh vai chegar. E você vai ver por que 1984 não será como 1984”, numa alusão ao famoso livro do Orwell.

Hoje é fácil rir desse comercial, ainda mais sendo um comercial. Desde quando alguma coisa que vai ser vendida aos milhares e é divulgada no horário publicitário mais caro dos Estados Unidos pode tirar qualquer onda de rebelde? Bom, é fácil detonar a publicidade. Mas quando você para pra pensar que essa lógica batida é utilizada largamente, sem dó nem piedade, por toda a indústria cultural ou mesmo pelos artistas ditos “alternativos”, aí entramos numa região lodosa que dá muito o que pensar.

É disso que trata o livro Rebelarse Vende, que eu demorei meses pra ler e fiquei postando pequenos trechos aqui no blog (finalmente eu terminei). Trabalho de dois professores universitários canadenses, o livro traça a história da contracultura e propõe a seguinte tese: em si, a contracultura, a rebeldia cultural, não traz grandes benefícios para a humanidade. Ela é ótima para nos divertirmos, para esquecermos as preocupações do dia-a-dia e, acima de tudo, ela é um excelente produto para ser vendido. Mas ela propõe pouquíssimas soluções plausíveis e eficientes e menos ainda é capaz de implementar essas soluções. Em outras palavras, fazer fanzine falando mal do “sistema” é barbada. Difícil é colocar a mão na massa e fazer alguma coisa concreta.

O livro abre já de cara metendo o pé na porta do movimento anti-globalização, um segmento relativamente novo mas que não passa de idéias requentadas que vêm sendo utilizadas desde a década de 60. Descreve a tentativa meio patética da revista Adbusters de lutar contra corporações gigantes como Nike e Reebok. Sua proposta: fazer um tênis “cultural e socialmente” correto. Um tênis produzido a partir de idéias anti-consumistas, vendido com idéias-anti consumistas, um tênis não fabricado por crianças escravas na Malásia.

O que a Adbusters começou a fazer, diferente do que parece, é a essência básica do capitalismo moderno: desenvolver um produto muito parecido com o de seus concorrentes mas diferente no verniz conceitual. Ou seja, tanto faz se o tênis é bom ou não em termos concretos, o que vale é a imagem que vem agregada ao tênis. É esse esquema que fez a Nike a empresa que é hoje, uma potencia da construção de marcas e valores sem uma única fábrica própria.

Esse tipo de lógica acontece o tempo todo com os produtos “contraculturais”. Filmes considerados alternativos são produzidos com dinheiro do governo ou de empresas patrocinadoras nada “alternativas”. Literatura “alternativa” é produzida a partir de investimentos feitos pelos escritores com o dinheiro ganho de atividades “não-alternativas”. Música alternativa é produzia e distribuída com dinheiro pago por consumidores cujos pais bancam uma mesada nada “alternativa”.

Isso tudo não é novidade para a maior parte das pessoas. A novidade talvez seja começar a encarar isso sem cair para dois extremos: o idealismo cego ou o sarcasmo.

O idealismo cego é a tentativa desesperada de encontrar algo realmente alternativo e que não tenha sua pureza deturpada por coisas como comércio ou mercado. Uma ilusão que tem por trás um desejo egoísta de se apropriar de algo como “só seu” ou “só da sua turma”.

A uma certa altura do livro, os autores colocam o conceito de “bem posicional”: bens cujo valor não se mede por seu valor intrínseco mas por sua “posição” em uma determinada escala. Por exemplo, uma banda recém descoberta por alguns entendidos no segmento da música é um bem posicional: têm alto valor porque poucas pessoas conhecem a banda. Isso acontece muito com regiões imobiliárias, cidades recém descobertas por turistas alternativos, filmes, etc e tal. Bens posicionais não necessariamente envolvem valor financeiro. Há bens posicionais baratinhos, como aquele boteco da esquina da sua casa que é excelente e poucas pessoas conhecem.

O grande “drama” dos bens posicionais é que eles são por definição anti-democráticos e anti-sociais. Se todo mundo descobre aquela banda desconhecida ou se todo mundo começa a ir no boteco da esquina antes freqüentado por você e seus amigos, eles perdem seu valor como bens posicionais. E aí a gente começa a reclamar que o lugar foi “descaracterizado”.

Aí reside um dos grandes dilemas dos movimentos contraculturais: eles são anti-democrátcos por definição. É preciso que todos o resto do mundo “não seja” ou “não tenha” para que você e seus amigos “sejam” ou “tenham”.

Uma questão muito importante que não foi esquecida pelos autores mas que passa ao largo de muitas discussões a respeito de contracultura é que 98% (minha estatística particular) do que é considerado contracultura geralmente é uma forma disfarçada de birra, egocentrismo e necessidade de proteção.

Fazer parte de um grupo que vai a um botequinho especial ou que gosta de bandas de um segmento ou de um tipo de cinema ou seja lá o que for oferece uma noção muito forte e definida de identidade por negação. “Eu faço parte disso, então OBVIAMENTE eu não faço parte DAQUELE pessoalzinho que assiste ao Faustão aos domingos.”

O grande perigo para qualquer pessoa envolvida com esse lance de contracultura (e eu já vivi isso na carne) é que o “pessoalzinho do Faustão” comece a gostar das mesmas coisas que você. Lá no fundo, a sensação de identidade tão forte que havia é dissipada e de uma hora pra outra você se vê em posição de igualdade com um monte de gente que não tem certeza de querer ter como amigos ou como parceiros. A identidade é abalada. E identidade abalada é drama.

Claro que estou amplificando e trazendo à tona processos psicológicos extremamente sutis. Isso acontece em diferentes níveis de acordo com a personalidade de cada pessoa. Mas eu acredito que diferentes nuances desse processo acontecem com todo mundo. Acho que é um composto básico de todos. Identidade, aceitação, negação, necessidade de inclusão.

(Lembrando que necessidade de exclusão ou diferenciação de um grupo maior não passa de necessidade de inclusão disfarçada. Você se inclui fora do grande grupo e fica confortavelzinho no seu nicho às vezes formado só por você.)

Reiterando: tudo isso não é NOVIDADE ALGUMA mas de alguma maneira o mundo inteiro age como se isso não acontecesse. Isso é absolutamente ignorado e quando não é ignorado brota um sentimento sarcástico e corrosivo de “a vida é assim mesmo” que coloca um gostinho amargo na boca e deixa um leve ar de derrota na coisa toda.

Mas derrota pra quê? Derrota de ilusões plantadas na nossa cabeça ao longo de muitos anos lendo aventuras contraculturais. De gente que botou o pé na estrada, que lutou contra o sistema que questionou o status quo, mas que em última análise se divertiu pra caralho, produziu obras divertidas, que inspirou muita gente, mas que no fim das contas também gerou uma enorme confusão entre diversão & contestação. Até hoje tem gente que acha que tomar uma cervejinha na esquina significa combater o status quo, a despeito de todo o processo de comercialização que existe em torno da cerveja e dos botecos.

***

Outro clichê desmontado pelo livro é o que diz que o capitalismo precisa de conformismo para ir para frente. Na verdade é o contrário: o capitalismo depende de rupturas para ir em frente, especialmente na área de consumo. No momento em que as pessoas consumirem todas as mesmas coisas o tempo todo, o sistema de produção industrial estanca. É necessário que um Zé mané comece a se sentir inconformado e busque algo diferente para vestir, usar, comer, ouvir, ler... isso atrai outras pessoas próximas a ele que também querem sentir aquele “diferente” que o cara está sentindo... e pessoas próximas a essas pessoas também querem, pessoas próximas a essas pessoas próximas a essas pessoas e assim por diante.

Existe aí uma espécie de pirâmide de consumo. No topo estão os Zé manes que não se conformam e querem coisas novas. Eles são considerados (como no sistema de estudo de primatologia...) CONSUMIDORES ALFAS. Esses caras são pessoas altamente interessadas em novidade, sempre buscando o novo, pessoas de mente aberta (ou neuróticas) que estão sempre experimentando, seja em um segmento ou em todos. Esses ALFAS são seguidos de perto por BETAS, consumidores dispostos a uma inovaçãozinha na sua vida mas só se eles virem primeiro os ALFAS usando e houve aí alguma possibilidade de aceitação. Os BETAS são vistos por outra camada de consumidores mais larga que tem menor permeabilidade à inovação, até ver que os BETAS usam e que ta ficando tranqüilo. Por último vem, digamos, “a massa”, que precisa de segurança para consumir uma novidade.

Esse sistema se desenvolve de muitas maneiras. Ele pode ser constituído direto por pessoas ou pode incluir anúncios, reportagens ou personagens de novela.

As novelas são uma ótima maneira de explicar isso. Vamos supor que surja em um círculo inovador da moda, digamos Londres, o hábito de usar um lenço amarelo amarrado na orelha esquerda. A moda aparece na rua, um guri loução começa a usar isso. Ele é um ALFA. Os amigos dele olham, curtem e começam a usar também. São os BETAS. Então uma revista modernosa tipo ID identifica esse fenômeno e faz uma reportagem. Pessoas mais aberta começam a amarrar lenços amarelos na orelha, mas ainda é um fenômeno restrito. Então uma figurinista da Globo, ligada nas tendências, comprou a ID aqui na banca do aeroporto.

Simultaneamente, um jovem de Porto Alegre foi a Londres e voltou usando um lenço amarelo amarrado na orelha. Os amigos dele gozaram da cara dele na Cidade Baixa, mas ele continuou usando. A essa altura, gente como publicitáros, designers, músicos, começam a usar lenços amarelos amarrados na orelha. A maior parte das pessoas acha esquisito.

A figurinista da Globo resolveu incorporar o lenço amarelo à roupa de uma personagem gostosa da novela. E em duas semanas as brasileiras todas estão usando um lenço amarelo.

Eu reproduzi de maneira MUITO TOSCA o sistema aqui e ele pode acontecer em diferentes níveis e organizações. Não necessariamente obedece a esses vetores e pode muito bem vir de baixo para cima na pirâmide social (vide funk carioca, vide moda rap). A questão aqui é o “modelo viral” como o consumo funciona.

Muitas pessoas não compreendem o funcionamento desse sistema e acreditam que as modas e as novidades surgem “do nada” ou então por algum tipo de ditadura de algumas instituições. Mas o lance é muito mais orgânico do que se pensa.

Até alguns poucos anos atrás, eu pensei que a moda fosse uma coisa absolutamente arbitrária. Mas convivendo com uma jornalista de moda e começando a trabalhar com áreas ligadas à moda na agência, entendi como brotam e se espalham as tais “tendências”. Sim, existem vetores importantes (sejam pessoas, mídias ou o que mais for) na disseminação delas. Mas o fato do grande público parecer estar sempre na ponta final do processo não faz dele uma parte neutra da equação. Pra dizer a verdade, é a aceitação do grande público que valida uma tendência.

Outro ponto interessante acerca do conformismo é o vício da contracultura em querer acabar com a uniformidade em todas as suas formas como se ele fosse “do mal”. Os autores do Rebelarse Vende lembram vez após outra que o ser humano passou a se organizar em sociedade para ter sua vida facilitada e não dificultada. Se hoje a vida em uma grande cidade pode parecer difícil e complicada, imagine o que era viver sozinho por aí em uma imensa planície deserta tendo que arranjar o que comer e o que vestir todos os dias. Claro que existem muitos sonhos e utopias a respeito de uma certa “pureza” da vida selvagem... mas mesmo os mais estúpidos selvagens logo se dão conta que o melhor é se reunir em bando e começar a uniformizar algumas ações, estabelecer normas de conduta a fim de otimizar os esforços e todos colherem frutos.

Normas, regras, unformização: tudo isso existe como uma maneira de facilitar a nossa vida. Mas de alguma forma criou-se uma espécie de senso comum contra normas, regras e uniformização em vez de buscar-se o bom uso delas. É graças a normas e regras que os carros não andam em cima da calçada (exceto talvez no Rio de Janeiro) e as janelas não ficam no lugar das portas; você consegue usar talheres em qualquer restaurante porque você nunca vai se deparar com um garfo que expressa a individualidade do dono do restaurante não tendo dentes; é graças à uniformização que você pode plugar a tomada da sua televisão em qualquer apartamento que vai morar; e por aí vai. Uniformização não é ruim “per se”.

E por aí vai.