23 October 2006

Conexão Acre



Você não sabe quase nada do Acre (Chico Mendes, Hildebrando, o q mais?), mas muito em breve vai saber mais. Se você for intelectual, já deve ter visto a reportagem na revista Raiz. Se for indie, tá por dentro do Festival Varadouro e do Los Porongas, pra não falar da matéria na primeira edição da Rolling Stone brasileira. Se não é indie nem intelectual, vai ser atingido pela história da região através da uma minissérie da Globo escrita pela acreana Glória Perez. Enfim, queira você ou não, o Acre vai entrar na sua vida. Na minha ele já entrou: faz menos de 24 horas que eu voltei de Rio Branco, onde toquei com os Walverdes no Festival Varadouro (fotos aqui no Flickr ou em links espalhados pelo texto).

Varadouro são os caminhos que os povos abrem na mata, “varando” com uma “vara” o que está impedindo o caminho. Nos anos 70, Varadouro também foi um jornal alternativo que circulou no Acre nos anos 70 (a primeira aparição de Chico Mendes na mídia foi lá). Feito na clandestinidade, o Varadouro dependia da boa vontade de um patrocinador consciente e da disposição dos integrantes viverem humildemente e correndo pra lá e pra cá com linotipos falsos pra despistar a polícia. Hoje, Varadouro é um festival de rock independente que está na segunda edição e se estabelece como um dos eventos mais importantes no novo circuito de música brasileira. O Varadouro está “varando” uma série de obstáculos, sendo o principal deles a distância do eixo SP-Recife. Por isso mesmo, ele faz parte do Fora do Eixo, agremiação de eventos e pessoas relevantes na música independente que estão estabelecendo um importante, ahn, eixo que atravessa o Brasil por dentro, passando pelo interior de São Paulo, pelo Cerrado, norte e nordeste. Mogi das Cruzes (SP), Uberlândia (MG), Palmas (TO), Belém (PA) e Porto Velho (RO) são algumas das cidades integrantes, só para ficar nas menos óbvias.

A cena de Rio Branco é pequena e recente, mas está sabendo se articular com inteligência e maturidade. Embora não sejam os únicos a meter a mão na massa, a coisa toda parece girar muito em torno da trinca Los Porongas, Catraia Records e Camundogs. O Catraia faz a sua parte não só sendo selo, mas também através de um estúdio que registra uma parte importante do que é produzido por lá. O Camundogs leva a bandeira do pop-rock bem feito e acessível, colocando o povo pra suas músicas junto, mostrando a faceta indie do orgulho acreano. E o Los Porongas assume o papel da banda antenada que mistura referências locais e universais e que vai para o centro do país fazendo o nome da região.

Como percebi no DoSol em Natal, o Varadouro é um festival jovem mas que já nasceu pensando grande: dois palcos, estrutura profi, a disposição de trazer bandas de todos os recantos brasileiros e a sabedoria de colocar produtores e jornalistas relevantes não só pra cobrir, mas também pra trocar uma idéia, tomar uma ceva, absorver e desovar informação. O intercâmbio de boas idéias qualifica as cenas locais tanto quanto bons shows. E algo interessante acontece: não só as pessoas “da capital” inspiram como também são inspiradas pelo sangue novo, pela energia e pelos horizontes diferentes que cidades como Rio Branco, Belém, Cuiabá, Natal e Fortaleza estão abrindo.


Dia 1 – Do Chuí ao Oiapoque

O Acre é logo ali, passando a farmácia.

Chegar no Acre não é bem assim pra quem vem do extremo sul. São 13 horas de vôo e de aeroportos. Mas quando você bota o pé na pista de pouso em Rio Branco e respira o ar tomado de cheiro de mato, sente que valeu a pena. Quando a gente entrou no ônibus da produção do Varadouro, já era quase uma da manhã e ainda havia a função de check-in no hotel pela frente. Então na sexta eu acabei vendo pouca coisa festival. Peguei as últimas quatro músicas do excelente Coletivo Rádio Cipó, galera que vem resgatando música tradicional de Belém e reorganizando em cima de bases de reggae, funk e música eletrônica, conseguindo fugir do surrado esquema "pega-um-sample-de-músia-folclórica-e-bota-em-cima-de-uma-batida." Na seqüência rolou o melhor show do festival: Macaco Bong, power trio instrumental de Cuiabá que deixou todo mundo de olhos arregalados e boca aberta. Explicar o som da Macaco é complicado mas as equações comentadas nos bastidores falavam de “um encontro do Slayer com o At The Drive In e o Living Colour” ou então do guitarrista Kayapy como uma mistura do Jimi Hendrix com o Thurston Moore. As comparações, a meu ver, não são nada exageradas. Seguro, intenso, experimental, metal, funkeado, barulhento, cheio de paradas inusitadas, climas e ritmos quebrados: só com um monte de adjetivos pra falar do Macaco Bong.

A seguir, os Camundogs jogaram em casa e colocaram o público na mão com seu pop-rock bem construído, baseado muito em cima de algo raro no meio independente: um vocalista que canta muito bem. No meio do show dos caras, o cansaço da viagem bateu pesado e não pude conferir o Moptop, mas o que me contaram no dia seguinte é que os caras fizeram um belo show e que já tinha gente cantando as músicas deles. Não é pouca coisa.

Dia 2 - de Rio Branco a Quinari



O segundo dia foi de exploração. Acordei num horário não muito inteligente, mas troquei horas de sono por uma caminhada pelo centro de Rio Branco. Foi meu primeiro contato com a remodelação promovida pelo governador Jorge Vianna (mais detalhes num texto específico abaixo), especialmente na Praça Plácido de Castro. A idéia era conhecer toda a região, mas tive que voltar correndo pro hotel pra uma entrevista pra TV União. Na seqüência, almoço com as bandas e jornalistas num bistrô amazonense (não comi nada amazonense, mas me esbaldei no Pavê de Farinha Láctea) e a seguir a agenda da tarde do Festival, que começou com uma visita à Usina de Arte João Donato. A Usina é um recém inaugurado complexo multicultural com espaço para artes plásticas, teatros, shows, além de salas reservadas para cursos e estúdios audiovisuais. Um dos espaços de exposições, aliás, estava já devidamente preenchido pela obra bem interessante de Gesileu Salvatore. A exposição Ninawá trazia objetos bizarros, místicos, orgânicos, meio sexuais até, feitos a partir de matéria prima natural e do folclore da região. Uma pilha meio Franz Krajberg, mas bem calcada na cultura dos seringais tanto em temática quanto na escolha dos materiais.

A visita à Usina não era por nada. Estava programada para lá a segunda tarde de debates sobre a inserção do norte na cultura independente nacional. Quem abriu os trabalhos foram três pessoas envolvidas no antigo Jornal Varadouro, aquele lá do início da matéria e introduzido pelo Diogo do Los Poronga como uma das raízes da atual movimentação do rock. Não pude assistir a tudo, pois tinha entrevista marcada na rádio União, bem no meio de um programa de dance music comandado por um figuraça.

Depois da entrevista, o Aarão do Camundogs me levou para um city tour mais completo: começamos por uma das margens do Rio Acre, onde comemos saltenha (um pastel furioso com batata e galinha) no Mercado Municipal e passeamos em frente a uma série de casas históricas repaginadas. Atravessando uma passarela modernosa, que lembra mais ou menos a ponte Juscelino Kubitscheck de Brasília, você gente chega na Gameleira, um simpático calçadão que abriga um mastro alto com uma descomunal bandeira do Acre (e a letra do Hino numa placa), além de mais casebres antigos de cara nova. Num deles, toda sexta rola um bem freqüentado chorinho indie, segundo o Aarão. Dali, partimos por uma das vias expressas que cortam a cidade até o município vizinho. Curiosidade: a cidade tem o nome de Senador Guiomard, mas todo mundo chama de Quinari. Até mesmo em uma sede da polícia está lá escrito na parede: Polícia de Quinari. Sensacional...

Em Quinari paramos pra comer tacacá, um caldo quente feito à base de tucupi (líquido extraído da mandioca), goma de mandioca, camarão, pimenta e jambu (folhas que deixam a língua adormecida). Apesar de bastante esquisito ao meu paladar acostumadinho a massa, feijão, arroz e pizza, eu já tinha ouvido falar bastante no tacacá porque meu pai é amazonense e vive com tucupi na casa dele. Outra atração de Quinari é o amendoim. O Aarão e a Ju me prometeram ser o melhor amendoim do mundo e, embora eu não tenha tanto conhecimento pra comparar, devo dizer que o amendoim realmente se destacou na minha experiência de vida com amendoins. A Gol deveria conhecer o amendoim de Quinari.

Mas a essas alturas já era hora de voltar e começar a se preparar pra segunda noite do festival. Viemos por mais uma das vias expressas do Jorge Vianna, essa especial porque abriga uma incrível ponte new wave.

2ª Noite do Festival


Devido ao pouco sono da noite anterior e um dia inteiro de entrevistas e city tour, acabei dormindo no início da noite e perdendo as bandas locais que abriram o festival, além do Mezatrio, de Manaus, que eu queria ver. Paciência. Ao menos consegui pegar o excelente show da Porcas Borboletas, banda de Uberlândia (MG). O Porcas é uma dessas bandas que consegue fazer o termo MPB não soar como palavrão, letras inteligentes não soarem chatas e uma postura teatral não parecer ridícula e forçada. A presença de palco deles é enfatizada por um som que lembra coisas do Arrigo Barnabé, mas com uma dinâmica de rock que permite a todas essas influências mpbísticas não destoarem num festival cheio de roqueiros malvados como a atração a seguinte. Tou falando do MQN, quarteto de Goiânia que eu já vi um milhão de vezes e que posso ver mais um milhão que nunca vou cansar. A entrada do mestre Gustavo no baixo injetou ainda mais metaleirice safada numa banda que já apavorava ao vivo. Tudo bem: fora solo de bateria e complicação, no rock nada nunca é demais.

Enquanto a gente arrumava o palco pra fechar a noite, o Los Poronga motrava por que é tão amado na sua cidade e por que vem recebendo tanta atenção da imprensa nacional. Com um som próprio que consegue inserir elementos regionais quase imperceptíveis no rock inglês dos anos 80, os Porongas soam absurdamente atuais e universais. Grande parte desse mérito vem de um excelente guitarrista que diz tudo que precisa dizer em dedilhados cristalinos bem colocados e embalados em efeitos sutis. Fazer auê com distorção é fácil, difícil é preencher o espaço com som limpinho. Enquanto eles finalizavam seu show, eu ficava no palco oposto, pensando em como é que íamos fazer pra tocar depois daquela pequena catarse acreana. A resposta você procura por aí nas resenhas do festival.

Enfim

Os festivais independentes brasileiros vem tomando para si um papel que ultrapassa cada vez mais a relevância para a "cena". Estão, na real, articulando cabeças pensantes, fazendo circular informação por todo o Brasil da melhor maneira que existe: pessoalmente. Orkut é bom, mas melhor ainda é quando gente que faz (e que pensa) se encontra cara a cara. Isso vem acontecendo com uma freqüência e uma abrangência geográfica impressionante. Resta trabalhar (e torcer) para que essas iniciativas ganhem pernas próprias, atingindo cada vez mais gente e ajudando a fomentar as cenas culturais e econômicas das cidades.

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NOTAS SOLTAS

Rio Branco
A capital viveu nos últimos 8 anos uma verdadeira virada. Várias partes da cidade foram reformuladas. O centro histórico teve suas praças, teatros, palácios e mercados reformados, pintados, uma coisa linda de se ver de se aproveitar. As ruas são impressionatemente limpas e amplas e os parques parecem bem cuidados, diferente da maior parte das cidades do norte. É tudo obra dos dois mandatos do governador Jorge Viana, uma figura pop porém controversa reconhecido tanto pela sua capacidade de fazer quanto pela sua megalomania, seu exacerbado orgulho acreano e sua habilidade como orador. Tanto é sua força que elegeu para o próximo mandato seu secretário de educação, o alternativo Binho Marques.

A (pouca) oposição discorda da atuação de Vianna. Considera o Acre um estado totalitário, que mantém sua força subsidiando grande parte da economia e da cultura. Além disso, apesar de toda a recente reurbanização, Rio Branco sofre (embora em bem menor escala) com os problemas comuns a toda grande cidade do norte, ainda mais se considerarmos sua perigosa proximidade com regiões chave do narcotráfico.

As pessoas com quem conversei sobre isso tudo eram todas ligadas ou simpatizantes ao governo. Mas mesmo aprovando e aproveitando a política de Vianna, também não me pareceram cegas aos deslizes e exageros do atual governador.

Baixaria
Cucuz, carne moída, dois ovos, cheiro verde e pimenta. Este petardo se chama Baixaria e é o que rebate a bebedeira do pessoal no fim da balada. Não cheguei a experimentar a iguaria.

Rixa
Uma coisa que eu achei interessante na matéria da Rolling Stone foi, pela primeira vez, citarem uma diferença que se repete em muitas cenas musicais. De um lado, bandas de classe média que contam geralmente com aporte de dinheiro de bons empregos, dos pais, da iniciativa privada devido à maior articulação comercial ou do governo graças a uma maior articulação política. Por outro, o pessoal que vem da periferia, com menos dinheiro, menos acesso à informação e também ao governo. Só mais um exemplo das inúmeras diferenças sociais no Brasil, o que exige cada vez mais diálogo e jogo de cintura.

Anoulédgements
Devo ressaltar a incrível simpatia e disposição de todos os acreanos com quem tive contato. Galera massa. Agradecimentos especiais ao Aarão, João Eduardo, Daniel Zen, Diogo, Karla, Violeta, Ju, Camundogs & Los Porongas. Valeu mesmo.