Mil Tsurus
Tudo começa quando Kikuji aceita um pedido para participar de uma cerimônia do chá. Ele é filho de um mestre do chá recém falecido e quem conduz a cerimônia é Chikako, também mestra e ex-amante de seu pai. Na mesma cerimônia estão a viúva Ota (outra ex-amante do pai de Kikuji) com sua filha, além de uma tal senhora Inamura acompanhada da filha, que tem a cabeça coberta por um lindo lenço estampado com uma profusão de tsurus.
O encontro dos cinco (Kikuji, Chikako, a moça do lenço de tsurus, a viúva Ota e sua filha) dá início a uma série de eventos lodosos, que se desdobram com lentidão e uma desajeitada harmonia. As ligações são complexas: duas senhoras disputando a atenção do filho do amante morto através de casamentos arranjados ou de sedução direta. Cada capítulo traz uma pequena surpresa quase novela das oito. Manoel Carlos adoraria, mas para facilitar a nossa vida e deixar a bagunça mais bonita, o Prêmio Nobel Yasunari Kawabata nos presenteia com um texto recheado de cenas visualmente ricas em simbologias e construídas de um jeito minimalista que não te enche o saco com descrições gráficas overdetalhadas. Em outras palavras, elegância e fluidez a serviço de uma história que precisa ser contada com clareza já que os sentimentos dos personagens nunca o são. Japoneses.
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E os mil tsurus? O que têm a ver com isso?
Os tsurus são garças de papel, origamis voadores. Eles fazem parte da “milenar cultura japonesa” e são um antigo símbolo de longevidade e prosperidade.
Mas a explosão de popularidade do tsuru veio com uma história real. Sadako Sasaki tinha dois anos de idade quando a bomba foi lançada sobre sua cidade, Hiroshima. Apesar da devastação, ela cresceu normalmente até os 12 anos, mas então descobriu que estava com leucemia por causa da radiação, algo bastante comum nessa época entre crianças.
Durante o tratamento, uma amiga de Sadako foi ao hospital e contou a ela que, como os tsurus vivem mil anos, se uma pessoa dobrar mil tsurus poderá ser curada. Sadako se lançou numa corrida contra o tempo para dobrar os mil tsurus antes de morrer, mas não conseguiu. Seus amigos completaram a tarefa para seu funeral e a partir daí gerou-se uma segunda tradição. Até hoje existem grupos em todo o mundo que se dedicam a dobrar levas de mil tsurus como uma oferenda pela paz mundial, que são depositados no Monumento das Crianças pela Paz Mundial em Hiroshima, no exato local onde a bomba caiu.
Tá, mas e os tsurus, o que têm a ver com isso?
Não sei. Eles não aparecem claramente no livro, mas a busca de Kikijo é por paz e de certa forma ele semeia a paz ao seu redor. Mesmo fazendo uma besteira aqui e ali, todo o seu andar é na direção de não se deixar levar por tradições maculadas por interesses particulares, como provavelmente fez seu pai ao misturar a cerimônia do chá com uma vida amorosa bem confusa, pra dizer o mínimo.
Existe algo de purificador na trajetória de Kikuji. E como Chikako, Ota e Fumiko são ligadas a ele por laços estreitos, todas acabam por receber sua parcela de purificação também. Desdobrando podres da sua própria vida pessoal e das mulheres da vida de seu pai, parece que Kikuji está desdobrando antigos origamis que voltam a ser simples folhas de papel abertas. E que, quem sabe, podem ser dobradas novamente, dessa vez na forma de pacíficos pássaros que vivem mil anos.
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No site da Cultura, tu lê o primeiro capítulo de graça. Vale a pena.