Na Natureza Selvagem
Em 1990, Chris McCandless, filho de um cientista da Nasa, se formou em História e Antropologia, doou sua poupança de 24 mil dólares para a caridade, e partiu para uma viagem pelas estradas da America sem avisar sua família. Nos dois anos seguintes, ele queimou todo o dinheiro restante na carteira, abandonou sua identidade, assumiu o nome de Alexander Supertramp e passou a viver anônimo entre os espaços abertos & selvagens dos Estados Unidos, as beiras das estradas e os sub-empregos que são o sustentáculo da parte menos glamourosa e mais dura da sociedade americana.
Em 1992, sua jornada à base das idéias de Jack London, Leon Tolstoi e Henry David Thoreau terminou de forma trágica após se meter numa floresta fechada e gelada do Alaska. Chris/Alex foi encontrado por caçadores, morto dentro de seu saco de dormir em um ônibus abandonado que lhe servira de morada. Até hoje é incerta a causa mortis, que fica entre a inanição (devido à falta de habilidade de Alex em conseguir alimento na natureza selvagem) e a intoxicação (por ter comido sementes cobertas por fungos tóxicos).
Do boca-a-boca na comunidade alasqueana, a história pulou para as páginas da prestigiada revista Outside nas mãos do editor Jon Krakauer. A matéria gerou polêmica e alguma revolta: se para nós, seres urbanos, havia algum tipo de fascínio na viagem anti-materialista de Mc Candless (o tipo de aura que só se acentuou com sua morte), para os experientes caçadores e habitantes do Alaska, Krakauer foi condescendente demais com a imaturidade e o entusiamos juvenil de McCandless, que poderia ter evitado a morte tomando cuidados simples e básicos conhecidos por qualquer um acostumado a regiões extremas. Um guarda florestal chegou a declarar que McCandless não morreu, mas praticamente cometeu suicídio ao não atentar para alguns fatores básicos.
A matéria na Outside gerou Na Natureza Selvagem, best-seller que refaz todos os passos de Chris de forma tão minuciosa e interessante (eu já li no mínimo seis vezes o livro) que acabou amplificando tanto o mito quanto as críticas. Krakauer não esconde em nenhum momento sua empatia por Chris, a ponto de dedicar um capítulo de Na Natureza Selvagem a uma experiência própria bastante similar à jornada do jovem aventureiro.
Mas mais do que justificar a morte de McCandless, o que Krakauer faz é buscar dentro de si uma substância, uma pergunta, um buraco que Chris e todos nós temos também. Alguns escondem isso pra sempre. Outros se engajam em arriscados ritos de passagem que levam a dois caminhos: voltar fisicamente intacto e construir uma vida sobre a compreensão que isso nos fornece ou, como Chris, perecer, deixando um rastro de sofrimento e incompreensão para os mais próximos (o encontro dos pais de Chris com o ônibus onde seu filho morreu é de cortar o coração), um alívio na solidão para alguns parceiros de jornada e a possibilidade de mitificação para os mais distantes.
O culto em torno de McCandless acabou criando distorções também tradicionais na cultura americana, como tours de helicóptero que levam ao ônibus abandonado e não exigem nem ao menos uma caminhada para conhecer o local. Hoje, também é possível encontrar por aí relatos e filmes como esse aí em cima, de curiosos e interessados que começaram a visitar o último refúgio de Chris.
Discussões que andavam esquecidas voltam à tona agora com o lançamento de um filme baseado no livro, ainda bem que pelas mãos cuidadosas do Sean Penn. Uma história dessas se presta perfeitamente para um blockbuster maniqueísta e simplista, no qual um garoto valente luta contra a sociedade materialista colocando o pé na estrada dando a todos uma grande lição de moral. Nas mãos do Sean Penn, no entanto, acho eu que a coisa não vai ficar tão rasa. Tendo visto Acerto Final e, especialmente Unidos pelo Sangue, dá pra confiar no taco do cara. Vamos ver né... ainda não fui atrás de nenhum review... estréia aqui dia 22 de fevereiro.
O site do filme é lindo de se navegar e é possível deixar tocando de fundo a trilha composta por Eddie Vedder.
A título de curiosidade, Chris no filme é interpretado por Emile Hirsch, que deve estourar por aí já que também é o Speed Racer dos Wachowski.
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Enfim, é a grande tradição americana de exploração do espaço aberto e deserto, com a subsequente criação de uma narrativa que se espalha sob a forma de lenda, perpetuando assim o mito da conquista do oeste selvagem. Dos cowboys, passando pelos beatnkis e chegando nos astronautas, me parece que esse é sempre o ponto: levar ao extremo a exploração da vastidão interna do ser humano por intermédio da vastidão externa (bem mais limitada).
Embora tudo possa ser subvertido, a discussão e o filme vem bem a calhar nessa época de absoluto excesso, de tudo à disposição - especialmente à disposição dos americanos, vamos combinar. Nunca foi tão difícil falar de uma cultura de renúncia, praticada por aventureiros e homens santos em todas as épocas da humanidade. E aí a gente encontra um segundo ponto de dificuldade: a mitificação da renúncia que acaba virando fuga - o que me parece, em parte, ser o caso de Chris Mc Candless. Embora seja perigoso simplificar a questão dessa forma, McCandless sempre foi extremamente revoltado com questões familiares mal resolvidas.
A chave aqui é um trecho do filme Words of My Perfect Teacher, documentário a respeito do professor budista e cineasta Dzongsar Khyentse Rinpoche. Nele, Bernardo Bertolucci (pra quem Rinpoche trabalhou como consultor em O Pequeno Buda) conta um diálogo que os dois tiveram a respeito do conceito de renúncia.
"Não seria a renúncia última... a renúncia da renúncia?" ri Bertolucci, parafraseando seu consultor.