14 January 2008

Vida Cinza



Dentre todas as profissões que ultrapassam fronteiras, a animação era a última que eu associava ao uso global de mão de obra barata. Geralmente esse tipo de rótulo está mais presente na indústra de gadgets, moda ou brand television (como aprendi com o Takeda que trabalha na Fox argentina criando publicidade institucional para canais do mundo todo). Mas Pyongyang, lançado no ano passado pela Zarabatana Books, parte de uma premissa nova pra mim: o uso de animadores norte-coreanos na produção de desenhos animados para companhias francesas.

Até aí tudo bem. O problema é você se lembrar o que é a Coréia do Norte: parte do "eixo do mal" junto com Irã e Iraque, algo relacionado à "guerra da coréia" (vaga lembrança de filmes americanos...), um país comunista liderado por um ditador louco e cinéfilo e que tem sua fronteira com a Coréia do Sul (capitalista, pujante, ávida consumidora de celulares e de banda larga) demarcada com colunas de mísseis prontos para serem disparados a qualquer momento.




O que mais? Como assim fazem animação na Coréia do Norte? Como?

Eis que o animador canadense Guy Delisle surge em 2003 com Pyongyang, um delicioso relato de viagem em quadrinhos que abre uma generosa fresta na pesada cortina que separa a Coréia do Norte do resto do mundo. Menos enciclopédico, menos dramático mas não menos consistente que a série de livros de Joe Sacco sobre a Palestina e a ex-Iugoslávia, Delisle mostra que seu traço minimalista e seu amplo uso de cinzas são perfeitos pra descrever a aridez cultural, econômica e política dos norte-coreanos.



Acompanhando a rotina do autor como supervisor de trabalhos de animação na produtora que pertence ao governo (como tudo no país), vamos conhecendo um pouco mais da cultura do país que chegou a abrir mão do comunismo parar criar seu próprio sistema totálitario (o Juche, uma versão mais radical do marxismo-leninismo) e que controla a população pelos métodos tradicionais de ditadura como prisão de dissidentes, execução sumária, estupro, trabalho forçado etc.

Mas é a desinformação massiva e o isolamento que, de fato, permitiram a criação de um verdadeiro culto à figura do ex-ditador Kim Il-Sul e de seu filho e sucessor Kim Jong-Il, cujas imagens em fotos retocadas funcionam como lembretes ideológicos por seus olhares vigilantes e sua onipresença nas paredes norte-coreanas. O resultado disso, no entanto, não é uma atmosfera de medo ou de revolta contida. Pior ainda, estamos falando de obediência entorpecida e auto-convencimento. É isso que mantém a Coréia do Norte "estável" apesar do altíssimo índice de pobreza.

As décadas de fartura pós-guerra erodiram nos anos 90 com o fim da União Soviética e com o enfrentamento de enchentes e secas históricas. O Estados Unidos, através de um programa da ONU, costumava enviar 700.000 toneladas de comida anualmente, mas com o fantasma dos testes nucleares de Kim Jong-Il e o velho hábito dos militares de se apropriarem das doações em vez de distribuir ao povo, essa ajuda foi sendo reduzida e hoje a China e a Coréia do Sul são os países que restaram como doadores substanciais.





Nem tudo isso eu aprendi em Pyongyang porque, repetindo, o livro de Guy Delisle não é um compêndio de informações geopolíticas. Mas seu trabalho é tão cativante e inspirador que a história ficou por semanas na minha cabeça e eu acabei assim: passando quase uma manhã inteira pesquisando para um post, conectado a pessoas de um país que supostamente não tem nada a ver comigo a não ser o fato de sermos humanos e dividirmos o mesmo planeta - por menos plausível que isso pareça.

Inspirador, hein?

***

Deslile tem mais dois relatos de viagem publicados: Shenzen, sobre uma mesma experiência na China e Chroniques Birmanes, sobre sua viagem com a esposa (que trabalha no Médicos Sem Fronteiras) a Myanmar. Nenhum dos dois foi ainda publicado no Brasil e pelo q notei o Chroniques Birmanes nem em inglês saiu por enquanto. Procurem por aí que deve valer a pena também.