08 January 2008

Menos que uma voz


Cada vez mais eu acredito que toda forma de arte é uma tentativa de permanência disfarçada de investigação. Não tenho muita certeza disso, porque bem pode ser a projeção da minha própria relação com a arte. Mas sempre que eu mergulho em uma obra intensa e bem torneada como os livros do Miltom Hatoum, vejo que as linguagens artísticas são um excelente refúgio contra o medo da morte. Excelente não porque ofereçam proteção de fato, mas porque, no fim das contas, caso você se mantenha atento, elas dão a real.

Que real dá Cinzas do Norte? “Sou menos que uma voz” diz a última frase do livro na boca do personagem Mundo (apelido de Raimundo) a seu amigo Lavo (de Olavo). Ao verbalizar suas limitações (comuns a todos nós) de forma tão sucinta após mais de 300 páginas de esforço lutando contra o cárcere cultural em que nasceu e cresceu – e do qual nunca se livrou – Mundo dá voz a todos nós. Pena que não enxerga isso.

Mundo é mais que um personagem, tipo, praticamente um arquétipo do mundo moderno (e não do pós-moderno...): filho de Trajano, explorador de juta na Amazônia, renega completamente as aspirações do pai - especialmente aquelas que dizem respeito a si mesmo. Mundo quer ser artista e não herdeiro de um empreendedor ligados aos militares em plena ditadura. A mãe, Alicia, vinda da plebe, fica ao lado do filho e ajuda no cabo-de-guerra com Jano apoiada em um passado (e um presente) repleto de ligações obscuras.

Lavo é a tela que serve de interface entre nós e o universo de Cinzas do Norte. Recebemos grande parte das informações por sua narração – o restante vem de uma carta de Ranulfo a Mundo. Lavo é o “amigo pobre” de Mundo, um rapaz sem grandes sonhos e com uma trajetória absolutamente comum, como se nascido apenas para servir de coadjuvante e narrador da tragédia de Jano, Mundo e Alicia.

Da mesma forma que em Dois Irmãos, a umidade opressiva da Floresta Amazônica em conjunto com a esquizofrenia da Manaus portuária (aberta e retrógrada ao mesmo tempo) forma paredes móveis que vão se fechando em torno de Raimundo. Seu arrojado projeto pessoal de se tornar artista com conteúdo político exige uma gigantesca quantidade de energia investida. Tradicionalmente, essa energia seria dedicada a derrubar cânones e barreiras geopolíticas. Mas aqui – ok, também tradicionalmente – esses obstáculos são personificados pela figura paterna e sua rede de influência.

Isso é só o início de uma disputa que chega ao fim do livro prescindindo de oponentes. A luta de Mundo é a luta de todos nós, apenas em sua forma mais intensa e emotiva: não apenas sobreviver, mas sentir-se vivo. Para alguns, em determinadas condições, não é preciso muito. Outros querem mais e apostam todas suas fichas batendo com a mão na mesa na esperança de que o impacto ajude na sorte.

Porém nada aqui é questão de sorte e sim de poderosas forças naturais em andamento. Em vez da floresta Hatoum (à disposição ali do lado se ele quisesse incorrer em certos clichês) elege como instância maior os laços, sejam consangüíneos ou apenas sentimentais.

“Trato a família como um ritual autofágico, em que todos se devoram para no fim sobrar apenas a palavra escrita, a memória inventada da tribo.” diz Hatoum em uma excelente entrevista . A real é que nem mesmo como a memória da tribo Mundo consegue se perceber. Então só lhe resta o pior dos infernos para os que querem deixar sua marca: ser subtraído, pelo ressentimento, da possibilidade de recriar sua história. Em outras palavras, ser menos que uma voz.