15 February 2008

Conector no Mangue pt 1


Pernambuco sempre teve um enorme fascínio sobre mim. Principalmente, óbvio, por causa do mangue beat. Desde a primeira reportagem na Bizz, eu fui automaticamente cooptado pela forma como esses caras juntaram tanta coisa de forma tão harmônica em uma linguagem, oferecendo ao Brasil um código aberto que hoje permeia grande parte da cultura pop nacional.

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A grande pergunta é: por que eu nunca fui pra Pernambuco antes? Porque eu sou meio tanso. É óbvio que eu deveria já ter ido. Mas sei lá. O Paulo André nunca nos chamou pro Abril Pro Rock. Nem a Ana Garcia pro No Ar do Coquetel Molotov. Nem a gente insistiu. E a gente não teve tempo de esticar um show dos Walverdes lá quando tocamos em Natal e João Pessoa (eu já estava estourado nos meus dias de férias depois de uns 10 dias de turnê e mais 10 de retiro). É caríssimo pra nós marcar turnê no nordeste. Porque da última vez que eu fui pro Nordeste (há uns 4 anos) escolhi conhecer o sul da Bahia primeiro. Desculpas, desculpas e mais desculpas... não me agüento...



Uma vez o André Frank dos Astronautas deu a barbada: é tudo culpa do Maurício de Nassau, um mancebo alemão, dito celibatário (será? no meio das índias ocidentais?), humanista, amigo das letras e das artes, calvinista de alto grau de tolerância religiosa (na Maurisstad, a Recife dos holandeses, foi construída a primeira sinagoga da américa e era permitida a prática de diversas religiões, algo raro na época)... pois este rapaz é que foi mandado pela Companhia das Índias Ocidentais cuidar do Pernambuco tomado dos lusos e ele trouxe na armada arquitetos, naturalistas, engenheiros, pintores, entre outros responsáveis por uma espécie de renascença concentrada no que foi considerada uma das cidades mais avançadas da colônia.




A real é que em Pontal do Maracaípe, num passeio de jangada com a família, coloquei os olhos no mangue e entendi todo o resto que não tinha entendido: as raízes à mostra (como é incomum na cultura dos centros urbanos do sul e mais comum no nordeste), o solo fertilizado pelo fato de ser pura transição (entre a terra e a água, entre o rio e o mar), tudo ao mesmo tempo agora, de forma extremamente complexa, porém simples - afinal, complexidade e complicação são coisas completamente diferentes).



“Um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar”, disse Chico Science em 96. “Toda vez que eu dou um passo, o mundo sai do lugar”, canta Siba. Mais de dez anos separam as duas frases, a primeira tirada de uma música do Afrociberdelia e o último entitulando o disco novo do Siba, ex-Mestre Ambrósio, hoje à frente da Fuloresta, uma agremiação de músicos tradicionais de Nazaré da Mata, interiorzão do estado, se não me engano.

A sutil diferença de foco entre as frase é emblemática: na primeira é o cara que precisa se mover, na segunda o cara é referência e o mundo é que se move em relação a ele. Pois o mesmo vem acontecendo com Recife. Se nos anos 90 uma galera antenada precisou dar um passo à frente para sair do lugar, hoje a cada passo que esse povo dá é o mundo que se ajeita à nova posição. Nénão? Diz q não pra tu ver...

Como disse o ex-publicitário (criador do “Não é nenhuma Brastemp”) e hoje viajante profissional Ricardo Freire: “Pode ser que você não tenha ido ultimamente ao Recife – mas é certo que ultimamente o Recife tem ido bastante até você.” Ele segue, no seu guia de praias, citando os programas de Guel Arraes na TV, os dramaturgos João e Adriana Falcão, Lenine e o mangue beat em um texto de 2002 cujos desdobramentos comprovam que a cultura do Recife vem sendo injetada (e bem recebida) na cultura pop nacional com uma regularidade e uma competência que só encontram paralelo na Bahia (e, de forma mais underground mas numericamente espetacular na cultura dos rodeios do interior de SP). Recife era cult, já está quase pop.



Recife também foi responsável, ao longo dos últimos dez anos, por reautorizar hordas inteiras de universitários em todo o país a curtir um “som Brasil” sem a pecha riponga que isso carregava durante os anos 80 e 90. De repente, os tecidos crus e a percussão voltaram à tona com credenciais all-access e o mangue beat é um dos grandes responsáveis - não pela concessão de autorização (isso não existe mais), mas fornecendo pontes (que ligam os rios aos overdrives). Se o axé permitiu o exercício da brasilidade nordestina que existe dentro de todo cidadão, foi o mangue beat que trouxe a classe média para a festa.

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... continua....