14 April 2008

Mallu Magalhães em Porto Alegre



Eu ia dizer que tive a impressão de estar vivendo um momento especial. Mas me recuso: na verdade eu tenho certeza de que vivi um momento muito especial. Tudo ali parecia ter sido pinçado cuidadosamente para construir um cenário bastante específico e totalmente contemporâneo.

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A começar pelo lugar do show, o Porão do Beco, terceiro bem-sucedido empreendimento das "organizações Beco". A casa que hoje traz o carimbo "Beco" atravessou quatro décadas como Encouraçado Butikin recebendo desde Roberto Carlos e Elizete Cardoso até a revolução disco. Hoje, é o lar simbólico (porque há outros) e factual (porque é o que ficou marcado) do underground portoalegrense. Há pelo menos 4 anos, nas suas sucessivas versões, o Beco vem funcionando (ao lado das extintas festas da antiga Funhouse e segundas no Jeckyll) como eixo do resgate do rock na cidade e da criação de novos pilares construídos por bandas como Superguidis, Pata de Elefante, Pública, Damn Laser Vampires e por aí vai. Sobre esses pilares, toda uma cena se criou, agregando ao palco uma pista de dança e os hoje célebres DJ's de rock.



Apesar de fazer todo sentido do mundo que "a tal da Mallu Magalhães" fizesse sua estréia gaudéria no Porão do Beco, a sincronia com essa linhagem histórica que eu descrevi termina por aqui. E então começo a sublinhar os elementos de ruptura: um show às nove e meia da noite, com a galera praticamente sóbria e calma (tem se cheirado muito em Porto Alegre) e uma atmosfera leve, sem aquela espessa nuvem de fumaça e energia pesada que costuma tomar conta do ar lá pela uma e meia manhã - horário normal de entrada no palco da primeira banda.

De repente, depois de enfrentar uma fila de 400 metros em nosso primeiro sábado frio e chuvoso, a menina entra no palco. Menina mesmo. Quinze anos, metida num terno não muito apertado, mais para David Byrne do que para Strokes. Não é tímida, se comunica bastante com a platéia. Mas é duas. Quando começa a cantar, interpreta, se entrega, se mistura ao violão, às sequências de notas bem colocadas, às boas letras de psicodelia infantil (um pleonasmo?) em inglês e português, às referências bem pescadas (Beatles, Dylan, Johnny Cash). Nos intervalos, gagueja, pontua as frases com "né?" e "meu", ri e conta histórias. Às vezes mistura as duas coisas.



Cada detalhe é sorvido por um Porão do Beco lotado de pessoas e de uma alegria sincera. "Mallu, casa comigo" grita uma menina. Sim, o cinismo está presente. Mas a naturalidade de Mallu vence o cinismo e pode-se notar isso no ar. Todo mundo presta atenção no show inteiro, se envolve com as brincadeiras infantis, entra no clima. Porque Mallu é a antítese do que se convencionou como o indie nacional. Ela é serelepe e saltitante, algo que combina mais com meninas de 15 anos do que com meninos de 27 anos (deixemos a Lovefoxxx fora disso). Ela foi na Globo e no programa do Lucio Ribeiro da mesma forma. Ela parece vir de outro planeta (a infância) sem se esforçar pra isso. Ela gosta de platéia (!!!!) mas conversa de igual pra igual e não com aquele surrado diálogo de estádio tipo "boa noooooite portooo alegreeeee" ou "estou muito feliz que vocês estão aqui, beijo no coração de vocês", essas coisas.



Penso que se o show rolasse às 2 da madrugada com todo mundo bêbado, chapado e cheirado, a coisa seria bem diferente. Mas percebo que aí também reside parte do encanto. Mallu fez cerca de 600 indies saírem de casa mais cedo, beeeeem mais cedo, e participarem de uma experiência diferente das suas vidas.

Ok, ela não fez isso sozinha. Teve ajuda forte. Da internet. Do hype do momento disparado por blogueiros influentes. Da curiosidade em torno de sua história pitoresca. Bem como do estado atual das coisas, tendendo fortemente ao folk. Tudo bem. Fomos até lá também por causa disso. Mas ficamos, assistimos e degustamos o show porque o show é bom. Porque o repertório é bem montado, as músicas são bem interpretadas e a menina consegue o que muito marmanjo não tem condições (eu não tenho): segurar uma platéia só na voz e viola, com bom humor e coração aberto, sem maldade.

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A Mallu, então, é tudo isso? Não, é o contrário: tudo isso é que é a Mallu.