27 May 2008

O Homem na Estrada

Veja como temos sorte, podia ser o Tom Cruise ali

"Quando acordava nos bosques, na escuridão e no frio, estendia a mão para tocar na criança que dormia a seu lado. Noites de trevas mais densas do que as próprias trevas e cada dia mais cinzento do que anterior. Como os primórdios de um glaucoma frio a obscurecer o mundo."

Pai e filho caminham por uma estrada que corta um mundo dizimado. A fina chuva de cinzas cai persistentemente sobre árvores retorcidas, corpos carbonizados e esqueletos de construções. Um carrinho de supermercado velho carrega as poucas provisões e apetrechos. A jornada é lenta e perigosa. Os poucos remanescentes do que quer que tenha acontecido surgem vez que outra no horizonte. Alguns passam ao largo sem querer cruzar histórias de sobrevivência. Outros exigem distância devido à ameaça de roubo e canibalismo. Ainda assim, é preciso ir em frente.

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Que prato para o Tom Cruise ou o Will Smith correrem de um lado pro outro fugindo de ameaças em um ritmo frenético e protegendo um garoto prodígio do cinema enquanto destila moralismo barato em falas pretensamente elaboradas, hein?

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Felizmente, parece que não é isso que vai acontecer com "A Estrada", novela do escritor americano Cormac McCarthy. O livro usa uma pesada distopia americana para reduzir a relação de um pai e um filho ao básico: poucas palavras, muitos pensamentos ruminados, toda a energia concentrada na sobrevivência física e moral. Descrevendo assim, a narrativa ganha contornos duros, como uma prova de resistência em pleno apocalipse. Mas esse é apenas o cenário. A história em si não é externa, mas interna. Um frágil e desgastado fiapo psicológico conecta pai e filho. Uma fagulha de vida que para o filho tem jeito de referência e para o pai, combustível. É assustador. É depressivo. É tenro. É lindo.

Olha, na boa, eu acho que o filme tinha que ser P&B

Pelo que tudo indica, é bem possível que saia um bom filme. Especialmente pela decisão da equipe de filmagem de utilizar o Mad Max como um contra-exemplo. E, de fato, se tem uma coisa que não cai bem em uma história como "A Estrada" é uma galeria de personagens bizarros do futuro atacando uma dupla de heróis.

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Os inimigos de pai e filho em "A Estrada" não são os outros seres humanos deseseperados. São o esquecimento, a inutilidade de certas lembranças e hábitos mais prosaicos, as coisas, pessoas e sentimentos perdendo sua função à medida em que o mundo se desfaz. Não com uma sequência de explosões, mas com uma lentidão assustadoramente convicente. "A Estrada" ganha de você por pontos e não por nocaute.

Isso me remeteu dirato ao 11 de setembro. Lembro perfeitamente da noite depois que os aviões bateram nas Torres Gêmeas, eu e uns amigos num bar conversando sobre as possíveis consequências. Havia uma certa eletricidade no ar, como algo muito grande fosse acontecer imediatamente. Uma espécie de revival da guerra fria, aquela iminência de ataque nuclear muito comum em filmes.




O véio McCarthy


E o pior aconteceu: nada aconteceu. Quer dizer, nada no sentido espetacular da coisa. Não houve uma grande guerra concentrada com muita destruição rápida resultando no apocalipse geral e irrestrito. O que aconteceu foi o início da corrosão de algumas seguranças e certezas. Lenta corrosão.

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Talvez aí resida grande parte da plausabilidade de "A Estrada". Não somos apresentados à catástrofe em um espasmo, mas de forma extendida, constante, frase a frase. E que frases...

"Apenas lembre que as coisas que você põe na cabeça ficam lá para sempre.

Você se esquece de algumas coisas, não se esquece?

Sim. Você se esquece do que quer lembrar e se lembra do que quer esquecer."

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O "The Observer" sugeriu que se lesse o livro como uma meditação sobre a morte (incrivelmente não consigo achar o link do texto de novo, azar). É algo que foge a nós durante a maior parte dos filmes/livros futuristas. Como se passa no futuro, parece que estamos falando de algo que ainda vai acontecer. E não do principal fato a respeito da dissolução das coisas: ela acontece paulatinamente, detalhe a detalhe, átomo a átomo, sob nossos narizes, o tempo todo. Claramente o ambiente que está sendo descrito como dizimado em "A Estrada" é o reflexo da mente dos personagens. O que acontece fora, na verdade, também está acontecendo com a mesma intensidade dentro. Não o "dentro" como consequência do "fora", mas juntos, indissociáveis. Não há devastação espacial/material sem um correspondente mental. E isso é algo a se pensar não só do ponto de vista global, mas principalmente no âmbito de cada um.

Meu, te puxa porque o livro é foda!


"A grande realização de Cormac McCarthy não é o sonho americano (...). Agora, ele nos deu o grande pesadelo americano. "


Um review do The Guardian contextualiza legal o Cormac McCarthy no cenário do romance americano, dividindo o gênero entre os escritores mais intelectuais e os "durões". Segundo o texto, McCarthy é meio que o avô dos "novos durões", mas se você quer se aprofundar nisso vai lá e lê porque entra em toda uma seara que eu não sei muito. Tudo que sei do vovô Cormac é que outro livro dele foi base para o Onde os Fracos Não Tem Vez dos Irmãos Coen, ou seja, parece que essa coisa de exploração do apocalipse pessoal é a praia do cara.

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Mas voltando ao filme: o diretor é o australiano John Hillcoat, que tem no seu currículo um filme com roteiro do Nick Cave (The Promise, já baixei pra assistir) e outro que parece bastante sinistro a respeito do sistema prisional no futuro. Não sei muito mais do que isso, mas essas pistas + as fotos, a escolha do Aragorn como ator principal e a presença do taciturno Nick Cave na trilha sonora reforçam a idéia de que algo decente pode muito bem vir por aí.

Aguardemos.