24 January 2006

Paisagens mentais and stuff

Esses dias estávamos discutindo aqui na agência a respeito de um comercial em que a Gisele Bunchen aparece sambando sozinha no sambódromo, saca? É para vender a sandália Ipanema, trilha do Jamelão cantando Bossa Nova Slow Motion. Pois então, ela está lá, poderosa (pra não dizer gostosaça), só de vestidinho, sambando aquela batida massa e tal.

A questão era que metade das pessoas na discussão defendiam que esse é um tipo de projeção de imagem exagerada, que a "mulher comum" gostava do comercial (os números de venda da sandália comprovam) mas que ao mesmo tempo rolava uma decepção porque ela nunca ia se sentir a Gisele Bunchen.

Eu estava do outro lado das opiniões: acredito que esse tipo de comercial (e não só comercial) só funciona se a pessoa tem dentro dela uma paisagem mental similar à que ocorre ali. Por exemplo, uma mulher só compra uma sandália que cai bem na Gisele Bunchem ou um creme que a Gisele Bunchen anuncia pois tem dentro dela a possibilidade de se sentir tão Gisele quanto à Gisele. Não estou falando de aparência externa ou de glamour aparente, mas de sentimentos & sensações muito internos, uma paisagem mental similar.

No ano passado, fizemos aqui na agência duas séries de comericiais como Reynaldo Gianechinni também vendendo sandálias. Neles, o ator falava olhando bem para a câmera, dando um texto bastante sugestivo, dando a entender que aquelas sandálias ali levam a mulher a conquistar caras como ele, que ele adoraria que a consumidora usasse a sandália.

Estamos iludindo as pessoas? Sim e não.

Não porque as pessoas são muito menos burras do que pensamos. Grande parte do consumo desse tipo de produto associado a celebridades são mais conscientes do que se costuma imaginar (ainda que não uma consciência totalmente clara). A consumidora dessa sandália sabe que não vai pegar o Gianechinni, mas ela tem dentro dela uma semente de sensações e sentimentos que permite que ela se sinta "poderosa a ponto de pegar um Gianechinni", uma espécie de potencial de gostosura. Obviamente esse poder não reside em hipótese alguma na sandália. A sandália funciona como um depositório externo desse potencial, ou entã uma espécie de catalisador material para pensamentos imateriais.

A ilusão que os comerciais perpetuam, então, não é a de que tal carro vai fazer você feliz, tal sandália vai fazer você gostosa, mas algo mais básico: a de que todas essas possíveis paisagens mentais acontecem "fora" da mente da pessoa e dependem de objetos externos para serem validadas.

Na verdade, eu acho que o termo correto para isso é "delusão". Ilusão é, digamos, tomar um objeto pelo que ele não é. Delusão é tomar um objeto por apenas uma de suas infinitas possibilidades.

Se você está em frente a um quadro com uma praia pintada ali e vê a praia pintada, isso é delusão. Não há praia alguma à sua frente, é apenas a sua mente interpretanto tinta sobre uma tela como "praia". A rigor, você pode fazer um esforço e enxergar tinta sobre tela, mas aí você está perdendo a noção de que também há uma praia ali. E também não há nem tinta e nem tela e nem praia, mas apenas átomos reunidos. E talvez nem átomos. E por aí vai. O processo de delusão, eu acho, é essa incapacidade de ver todas as possibilidades, isolando sempre um ou dois significados para as percepções.

(Esse lado é bem complicado e eu não tenho muitas ferramentas para explicar. Portanto tenham em mente que essas minhas explicações sobre ilusão/delusão são bastante superficiais.)

Voltando aos comerciais. Ao dizer que uma sandália traz felicidade, estimula-se um processo de delusão, porque na verdade uma sandália pode trazer felicidade. Só que é felicidade de baixa qualidade: pouco duradoura, pouco confiável, facilmente desmontável. Quase todas as felicidades associadas a objetos externos são assim, de uma sandália a um Audi.

Esse é um modelo que não se restringe à publicidade. De fato, todo o funcionamento da nossa vida obedece a esse esquema. Para ir ao cinema e nos divertirmos, dependemos disso (os lamas adoram o exemplo do cinema). Você senta em uma sala escura e luz é projetada sobre uma tela. Zumbis comem crianças e nos apavoramos, mas aqueles zumbis e aquelas crianças não existem. São apenas luz sobre a tela.

De novo, é a nossa mente que constrói uma paisagem mental na qual zumbis e crianças convivem não tão harmoniosamente - com o apoio da luz sobre a tela. Se fôssemos capaz de perceber que só há luz e tela ali, não sofreríamos com os filmes.

Os lamas insistem que fazemos isso com a nossas relações também. Eu acredito e todos os estudos que tenho feito levam a conclusão para o mesmo lado.

Mas vou te contar: é difícil de incorporar essa noção ao dia-a-dia.

A delusão, com seus altos e baixos, suas felicidades que terminam e seus sofrimentos familiares, têm sua maldita atração.