Criatividade
Semana passada fiz um curso sobre processo criativo oferecido pela empresa. Trouxeram para cá Charles Watson, um ex-pintor inglês que mora há 30 anos no Rio de Janeiro e é figura importante no cenário das artes. Também é, na minha opinião após um rápido curso de 20h em 4 dias, um excelente professor, que te desafia, que te angustia, que te coloca um monte de questões punk enquanto passa o conteúdo.
Eu anotei algumas coisas pontuais que me chamaram a atenção. Algumas eu já tinha ouvido, outras eu já tinha me dado conta, outras eu nunca tinha pensado.
Uma parcela do conteúdo eu já tinha visto sob forma de budismo e foi realmente fascinante ver aquelas informações organizadas de outro modo. A cultura humana é realmente incrível na maneira como reorganiza as informações básicas que reúne. No fundo, é tudo a mesma coisa...
Obviamente o que vem aqui é uma redução de tudo que captei, além de uma interpretação particular. Conversando com outros colegas percebi que no início eu ainda achava que todas as pessoas estavam participando do mesmo
curso. Mas é claro que estava cada um dentro do seu processo particular.
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Pra começar, a base de tudo.
Existe uma espécie de senso médio que diz que criatividade é qualquer coisa muito louca e diferente. E uma das frases que eu mais curti foi: "Criatividade pressupõe a capacidade de transitar entre pólos subjetivos e objetivos."
Ou seja: criatividade não é qualquer coisa mutcholôca. É preciso haver a presença de “não-criatividade” para que a “criatividade” seja percebida ou pensada assim. Em outras palavras, criatividade implica obrigatoriamente a existência de LIMITES.
Quando o Charles Watson falou disso, na hora me lembrei da palestra do diretor de criação mundial da Lowe que assisti em Cannes. Ele tinha um power point vazio com dois jogadores de tênis na tela sem quadra e sem rede. Ele falou "Assim é um jogo meio sem graça... mas vamos deixar mais interessante". Aí ele clicou e apareceu a rede. "Agora ficou melhor... vamos deixar o jogo ainda mais interessante..." Então ele clicou e surgiu o contorno da quadra.
Sacou? É muito fácil jogar o que quer que seja sem delimitações. É muito fácil ser “criativo” sem limites. Você simplesmente fica lá pirando. Mas qual a graça disso? Qual a validade? A beleza de todos os que foram extremamente criativos nas suas áreas está justamente no fato de que eles estavam lidando com limites absolutamente restritivos. Quanto mais restritivos, mais criativos os caras tinham que ser.
Pra mim isso vai contar muito do que aprendi na vida. Aprendi errado! Sempre considerei a expressão “natural” e “selvagem” uma coisa “criativa.” Nunca havia me dado conta (conscientemente) da importância dos limites. Limites sempre foram motivo de reclamação para mim. Especialmente em publicidade. Em publicidade você tem que ter um nível de jogo de cintura altíssimo porque você tem restrições o tempo todo.
Então eu pensava: “bom deve ser quando o cara é artista, porque ele não tem limites”. Mas que bobagem! Picasso só foi Picasso porque ele lidou com limites absurdos! Os limites dele eram muito piores do que “prazo” ou “grana” ou “público”. Picasso lutou contra toda a história pregressa da arte. E foi justamente essa camisa de força que fez com que ele fosse tão genial.
Outra lembrança que me vem à mente agora é o show do Sonic Youth. A minha vida toda eu ouvi os discos achando ingenuamente que os caras faziam “um puta barulho massa e divertido, botavam os demônios pra fora”. Aí no show você vê que é uma criatividade linda, um derramar de sentimentos incontidos mas dentro de limites muito bem estabelecidos, limites que eles continuamente empurram e demarcam. Não é só simplesmente tacar a baqueta nas cordas feito um bezerro bêbado.
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Outra boa frase: "Pessoas criativas têm meos ansiedade em nomear as experiências. Elas vivenciam as experiências mais diretamente." Isso é algo muito discutido no budismo e é uma coisa muito muito difícil. Acho que aqui o Charles Watson estava falando em graus, porque obviamente pessoas criativas também não se relaiconam total e diretamente com as experiências, sempre há uma mediação mínima. Mas com certeza pessoas criativas têm maior tolerância a experiências q não podem ser encaixadas em conceitos e parâmetros por um determinado tempo.
Aqui obviamente me lembrei de inúmeros ensinamentos budistas. Especialmente no zen é dada muita ênfase nessa experiência direta, na convivência com a não-conceituação, algo que demora um bom tempo. A meditação sentada e silenciosa é nada mais nada menos do que um treino nisso: em vez de se envolver em atividades o tempo todo, você se senta e abre mão da atividade para conviver com os conceitos da sua cabeça. Você começa então a se relacionar com esse neurótico processo de conceituação até ultrapassa-lo. Curiosamente, você não pode intencionar ultrapassa-lo ou não vai chegar a lugar algum. Se você tiver essa intenção, vai estar criando um novo conceito e não tentando ultrapassar. É uma armadilha tacanha e o único jeito de fugir dela é sentar sem nenhuma expectativa – o que é muito bonito de se dizer mas algo bem complicado. É famoso “the path without a gol” ou “the path is the goal”.
O Charles Watson fala muito disso: o processo criativo deve ser um fim por si só. Ninguém que se envolve em alguma atividade criativa pode ficar pensando no fim, na recompensa, porque isso automaticamente mata o processo criativo.
É lindo e paradoxal: você só tem a chance de alcançar seu objetivo se abrir mão dele e se jogar totalmente no processo de alcançá-lo. Segundo o inglês, nessa entrega você se esquece de si mesmo, abre mão de você e assim a coisa toda flui. É por isso que uma pessoa envolvida em uma tarefa que ama esquece de horários, esquece do cansaço, esquece que está com fome: ela está totalmente envolvida no processo, a noção de passado e de futuro, de background e metas, se dissolve. A pessoa e o processo são um só e é aí que a coisa anda.
Todo criador, segundo ele, deve temer a sua criação. Porque quando você chega na obra, termina o processo criativo e tem a solução, acaba a melhor parte: o processo em si. Curiosamente, o ato criativo é um ato que leva invariavelmente à uma morte. E a morte é sempre dura. Criar é morrer o tempo todo.
No curso, o Charles Watson mostrou um vídeo que mostrava o matemático que desvendou o Teorema de Fermath, considerado o maior problema de matemática da história, que ficou 300 anos sem ser resolvido. A primeira cena do documentário é o cara contando o dia que desvendou a equação. Ele começa a chorar e diz “isso foi a coisa mais importante que aconteceu na minha vida e nada mais então teve tanta importância.”
Moralismos à parte (aaah, mas e os filhos dele...) a gente vê aí o que é o dilema de todo criativo: quando você chegou no objetivo, acabou. Você tem que partir para outra.
Bom, no meu caso isso não é assim um grande problema. Minhas duas atividades criativas mais aparentes são a publicidade e o rock. Sempre vai ter anúncio pra fazer todo dia e sempre vai ter musiquinha de 3 acordes pra fazer.
Agora, quando você parte para atividades REALMENTE intensas como mudar a história da química ou quebrar todas as regras da música... é outro nivél. E nesse nivél, atingir um objetivo é um problema. Porque para onde você vai depois?
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Outra coisa interessante que eu pesquei foi isso: só a existência de um problema traz novas possibilidades. Uma situação onde não há obstáculo é por definição uma situação CONFORMISTA e não-criativa, não há a necessidade de criação.
Isso vai contra toda uma cultura de reclamação que está entranhada na história do Brasil. Você sabe, diferente de muitos países, no Brasil a culpa é sempre “DELES”: o governo, a polícia, a direita, os estados unidos... ou então os comunistas, o MST, os vagabundos...
Na verdade isso vai contra toda a vontade de chorar cada vez que algo dá errado. Também é algo muito bonito e edificante, mas exige uma boa dose de treino e clareza mental pra ver as coisas assim.
De qualquer modo, acho que é melhor, mais produtivo e vivo enxergar assim do que do outro jeito.
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Outra: ele contou a história do Arquimedes e da banheira para ilustrar a afirmação de que QUALQUER FENÔMENO PODE SER UMA RESPOSTA POTENCIAL PARA UM PROBLEMA. O que é preciso é encontrar o problema certo. Ou seja, Arquimedes tomou banho a vida inteira numa resposta, mas aquilo só se converteu em respostas quando ele tinha um problema. Mais ou menos isso.
Isso nos leva a outra afirmação do Sr Watson: não existe informação inútil.
“Dizer que algo não serve pra nada significa dizer que ainda não foi encontrado o problema para qual ALGO é a solução.”
Se isso traz implicações incríveis em um processo criativo no “trabalho”, imagine na sua vida. Na verdade, o que eu compreendi do curso todo é que atitude criativa não é algo que se restringe ao processo que você está envolvido naquele momento, determinado projeto. O que está fora do projeto também é envolvido.
Ou seja, é toda uma atitude de vida que está em jogo.
De fato, o Charles Watson o tempo todo foi muito provocativo a respeito da atitude de cada um com a vida.
Ele contou uma história muito interessante a respeito de um artista de performance taiwanês que ficou um ano da sua vida fazendo uma performance. Durante 365 dias, a cada uma hora ele bateu ponto num relógio ponto instalado no seu atelier. E a cada batida de ponto, ele se filmava ao lado do relógio em um frame.
Um ano.
Um ano sem se afastar mais de 50 e poucos minutos do relógio ponto.
Todos os dias.
Dia e noite.
Dormindo no máximo períodos de 50 e poucos minutos.
A primeira coisa que a gente pensa, como levantou o Charles Watson, é: “Mas que perda absurda de tempo! Perder um ano inteiro fazendo isso??”
Mas ao mesmo tempo, ele levantou uma questão que eu achei tocante:
Você tem algo na SUA vida ao qual dedicaria TAMANHO comprometimento?
Porque a gente pula a vida toda de atividade em atividade sem um comprometimento real e maior nesse nível com qualquer coisa.
Enfim, é de se pensar, repetindo.
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Mais uma anotação do curso:
“O fazer não admite o especular. O especular não admite o fazer.”
Quaaaaaaaaaaaaantas conversas perdidas em projetos mirabolantes e nunca colocados em prática? Um dia ainda vão descobrir que o maior inimigo das grandes obras são as mesas de bar. Lá tudo é discutido, tudo é pensado e articulado, mas absolutamente nada é feito porque em vez do cara ir fazer, no outro dia ele tá de volta na mesa do bar.
Tá bom, estou desconsiderando toda uma tradição de artistas boêmios que se reuniram em mesas de bar para revolucionar seu tempo. Mas talvez a diferenças entre os grandes aristas e nós é que eles voltam bêbado pro atelier e trabalham enquanto a gente cai bêbado na cama preguiçosamente.
Uma outra boa metáfora é churrasco de bêbado. Saca? Tá todo mundo bêbado no bar e combina CEEEEEEEERTO um churrasco no outro dia animadamente.
Esse churrasco, claro, como algumas revoluções, nunca acontece.
Preguiça... ah, a preguiça!
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Picasso citado no curso: “É no fracasso de tentar imitar os mestres que eu me torno eu mesmo.”
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E pra fechar, um sisteminha pra definir processo criativo que ele inventou lá.
PROCESSO CRIATIVO PRESSUPÕE
- A existência de uma cultura que contenha regras simbólicas
- Uma pessoa que traga inovações dentro dessa área simbólica
- Um grupo de peritos ou entendidos que reconheçam tal inovação
Só com isso daí já dá pra brincar bastante...