13 March 2007

É tudo culpa do Bernays

Bernézinho


Faz dias que estou querendo escrever sobre esse documentário. Na real eu venho digitando sobre ele há dias, compilando as anotações que fiz enquanto assistia, trabalhando e retrabalhando o texto. Mas cada vez que repasso, minha cabeça dá mais uma imensa volta e tudo se revira.

Vamos tentar do início: tou falando de The Century of Self, documentário ma-ga-vi-lho-so da BBC escrito, produzido e locutado pelo Adam Curtis, ao que tudo indica um exímio documentarista punk pop. Por que punk pop? Pop porque qualquer um com dois neurônios consegue entender a linha de raciocínio dele mesmo sem dominar todos os complexos assuntos que ele trata. Punk porque a colagem de imagens me lembra muito a estética de zines e também as músicas do Sonic Youth. Como é que alguém consegue parecer experimental e pop ao mesmo tempo? Talvez o fato dele ter freqüentado a mesma escola do pessoal do Gang of Four explique a sutil ressonância que a estética do documentário emana em relação ao zetgeist pop atual.

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Você entendeu a última frase? Nem eu.

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Explicação: Gang of Four > Franz Ferdinand > zetgeist pop atual

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Eu sei que tu já rolou a barra pra baixo e o post tá grande. Eu sei que tu é déficit de atenção é um problema endêmico atualmente.

Mas tende paciência: isso tem a ver com o assunto no fim das contas.

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Voltando ao documentário: tem pra ver na web, mas eu sugiro que vocês tentem baixar pq deve ser chato ficar vendo em streaming no You Tube ou no Google Video.


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Mas o babado é o seguinte: nos anos 20 o Edward Bernays, sobrinho americano do Freud, fez um mashup espertíssimo de teoria psicanalítica com interesses industriais e montou o esquema básico de funcionamento da sociedade de consumo. Para ser mais claro, a grande deixa de Bernays para a indústria foi abrir a possibilidade tratar os consumidores como pessoas com pensamentos inconscientes, não expressos claramente. Isso significou começar a oferecer produtos que satisfizessem não apenas suas necessidades, mas também seus desejos. Por exemplo: eu necessito calçados. Mas eu desejo tênis Adidas vintage ou similares. Essa pequena diferença semântica revolucionou toda a cadeia produtiva e forneceu meios para o crescimento econômico e para o controle de massas por parte do governo americano.

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Freud &Anna (freudiana?)

Sim, controle de massas. A influência das teorias do Freud na política e economia americana não se resumiram ao sobrinho Bernays. A filhota, Anna Freud, também teve um papel fundamental em difundir a necessidade de reprimir os impulsos primais de forma coletiva pra impedir grandes levantes irracionais que poderiam levar a desvios como o nazismo. Anna (e muita gente poderosa) acreditava que isso era o caminho para uma sociedade feliz, democrática e estável.

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Grande parte da população devia concordar com isso, não vamos botar tudo nas costas dos poderosos.

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Corta para o Institute of Motivational Research, no qual o psicólogo Ernest Dichter também curtiu mixar a teoria psicanalítica com os problemas das corporações. Foi dele a idéia de, pela primeira vez na história, reunir consumidores numa sala e colocá-los para bater papo enquanto se analisava as motivações subjacentes à conversa. Aqui a idéia não seria propriamente controlas as massas, mas sim oferecer produtos mais afinados com os desejos que elas não estavam expressando claramente.

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Um case bem elucidativo é o da mistura de bolos Betty Creek, que enfrentava rejeição da dona de casa dos anos 50. Graças aos focus groups dirigidos por Dichter, foi possível descobrir que o problema da mistura era ser muito fácil de fazer! Sendo muito fácil, a dona de casa se sentia uma inútil numa época em que o trabalho doméstico era altamente valorizado na sociedade. A solução? Tirar o ovo da receita pré-pronta e estampar bem grande na embalagem: ADICIONE UM OVO.

As vendas dispararam.

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Marcuse & abuse


O problema é que no fim dos anos 50 pensadores como Willhelm Reich, Herbert Marcuse e Arthur Miller (de cara porque a Marylin fez psicanálise e acabou se suicidando) começaram a criticar as idéias psicanalíticas e a sublinhar sua ligação com o controle de massas por intermédio da política e da publicidade. Esse pensamento não era um fato isolado, mas parte de uma inquietação cultural que buscava combater o conformismo dos anos 50 com a simples auto-expressão, a afirmação do indivíduo. Algo comum e ridículo em tempos de blogs e flogs, mas um grande statement político na época.


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O que o pessoal da contracultura não esperava é que, em vez de se tornar o ponto de partida para uma sociedade mais livre, essa revolta acabou criando a maior oportunidade de negócios de toda a história. Pois se as pessoas estava meio perdidas tentando se encontrar, buscando suas identidades, a indústria de bens de consumo estava aí para atender essa demanda también!

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A questão era a seguinte: como criar produtos para pessoas tão diferentes entre si? Mais uma vez o problema foi resolvido pela associação de psicologia, pesquisa e marketing. Ao longo dos anos 70, surgiram novos métodos de pesquisa para compreender o gosto do público não mais do ponto de vista demográfico (classe social, posição geográfica, sexo), mas sim pelo viés dos seus pensamentos e sentimentos mais, digamos, profundos. A possibilidade de se identificar e classificar esses dados em “lifestyles” foi o grande motor do consumo nos anos 80 e a base do individualismo yuppie.


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Não é pra menos que os hippies foram tão desmoralizados, porque o mercado soube compreender o que eles pediram ao establishment ao longo de duas décadas e entregou tudo direitinho, embaladinho, classificado em prateleiras (e tinha até lojas alternativas para os que não queriam ser encontrados nos grandes mercados). É como diz o ditado: cuidado com o que você pede, porque pode acontecer.

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Clinton, chegado numa pesquisa oral

Nos anos 90, enquanto essas idéias todas semeadas lá nos anos 20 pelo Bernays estavam bem estabelecidas no mercado de consumo e se desenvolvendo com uma complexidade que até hoje me comove, chegou a hora da política entrar de cabeça na metodologia marqueteira. O último episódio de The Century of Self conta das mudanças históricas que o Partido Democrata americano e o Partido dos Trabalhadores inglês tiveram que fazer em suas plataformas por conta de descobertas feitas em focus groups. O gancho é utilizado para lembrar o problema que é ouvir os “desejos inconscientes” do público sem fazer algum tipo de filtro, especialmente na área de política. O mesmo grupo de eleitores que reclama que o governo gasta demais com ferrovias, alguns anos depois reclama que o governo gastou de menos com ferrovias.

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Tá mas e daí?

Pois é, meu filho. Daí nada. Porque enquanto milhões ao redor do mundo enchem a cara de cerveja em boteco repetindo antigos slogans dos anos sessenta na esperança de mudar alguma coisa, estamos todos dentro de uma trilha muito bem pavimentada desde os anos 20. As idéias do Bernays são os alicerces da economia e da sociedade mundial hoje. Mas isso não é uma questão de acreditar ou não, de concordar ou não: é parte integrante do sistema de funcionamento do planeta no momento. Ponto final. Deal with it.

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A associação de consumo com expressão pessoal virou standard não só na economia mas também em toda a área da cultura: somos o que consumimos, não só o que compramos.

Consumo não quer necessariamente dizer compra. Nem sempre é preciso comprar para consumir, ainda mais nesses tempos de download grátis.

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O mínimo que eu posso pensar disso tudo é que tem que se ter um cuidado incrível com o resultado de pesquisas e que não é um bom negócio pra ninguém simplesmente sair atendendo o desejo dos consumidores. O resultado é sempre irregular.

Nos países em que existe uma massa de consumo bem formada, temos um bando de gente mimada e mal acostumada.

Nos países onde o consumo é desigual, não preciso nem falar.

Pelo lado da indústria isso é ruim porque gera uma ansiedade do cão: nunca se sabe o que mais precisa fazer pra satisfazer essa gente.

Pelo lado da publicidade, idem: temos sempre que ficar inventando uma maneira nova de vender Danoninho, agora no sabor Goiaba.

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O que eu vou fazer na prática, no meu trabalho, com isso tudo? Não queira saber...

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A saída? Se eu soubesse a saída, eu não estava escrevendo em blog. Tava dirigindo táxi.

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Mas arrisco um palpite (não me seguro).

Consciência do momento presente, compaixão aberta a todos (todos mesmo, hard work), clareza quanto à impermanência de tudo e noção de que toda ação tem um efeito, que tudo que acontece vem de causas e não de alguma randomicidade maconheira.

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Vai lá e vê o documentário, tá?